Abro este especial com um poema muito, muito querido para mim. Chama-se "A Dream Within a Dream", de Edgar Allan Poe, e penso que sua melancolia e simbolismos se encaixam muito bem com nossa ocasião.
Lembro quando comemorar aniversário dos blogs era um evento. Merecia postagem, episódio especial, artes, capítulos... Parece com nossos aniversários. No começo fazemos festa, bolo, presentes, convites, enfeites... E, conforme os anos passam, as comemorações ficam mais singelas. Às vezes passamos batido, sequer. "A gente comemora outro dia.". Desta vez, como uma espécie de presente, deixo um especial que não sei bem dizer de onde surgiu. Ele apenas me ocorreu e eu precisei transpô-lo para o papel, como há muito não tenho feito - quando foi que paramos de fazer isso?
Lê-lo não irá afetar diretamente na história, logo, não se sintam intimados a fazê-lo. Por esse mesmo motivo, não pouparei "spoilers" da leitura, pois sequer é uma história a ser continuada. É simplesmente uma necessidade que tive. Se resolver ler, espero que possa fazer isso com o coração aberto, lendo cada palavra com muito carinho, pois com certeza não é uma história que se faz em diálogos, mas no peso de cada sentimento. Essa história é um presente para Kalos, e com certeza será lida com outros olhos por aqueles que se identificam com os parágrafos.
Nos últimos tempos tenho estado um tanto pensativo. Sobre mim, sobre as coisas, sobre os capítulos curiosos que já passei. Há meses que Kalos está desativada. É estranho, pois ela ocorre em meus pensamentos mais que corriqueiramente. Mas eu sempre estou ocupado. Trabalho da faculdade. Estágio. Projeto extra. Confraternização. Sabe aquele velho amigo que você não conversa há anos, por mais que ele esteja fresco em suas memórias? Depois de tempos vocês conseguem conciliar de se encontrar. "Como assim você tá trabalhando fora?" "Pois é, faz uns anos... Você tá namorando, né? Vi foto" "Não, não... Nós terminamos, já, haha". Foi um especial denso e longo, não quero forçá-los a ler nada. Não é sobre uma jornada maluca com batalhas frenéticas, mas um turbilhão de pensamentos que eu nunca havia escrito antes. É só que... Senti que precisava ser verdadeiro. Grande parte dos leitores (que ainda não me abandonaram, e eu os amo por isso), amigos, autores que por aqui vem... Estão provavelmente nessa fase. Nessa transição. Tantos leitores nos deixaram por isso, talvez. Tiveram que largar os consoles, sair um pouco do mundo Pokémon. O mundo real os chamou. Ele chama todos nós até que fique impossível não ouvir. Espero que não procurem pela lógica de uma maneira absurda. A intenção era justamente trazer um sentimento onírico, em que as coisas mudam de forma, tempo e lugar como em nossa cabeça. Não como acontecem, mas porque acontecem. A ideia de personificar um blog já havia sido muuuito abordada pelo Canas em Sinnoh algum tempo atrás. Emprestei sua inspiração para trazer esse especial e espero conseguir ter captado a essência. Pode parecer um drama bobo, uma sofrência eterna, forçado, clichê... Mas eu precisava de cada uma daquelas palavras escritas da forma que estão. Acho que nunca fui tão explicitamente verdadeiro, mas ao mesmo tempo fiz o que sempre fiz. Aqui sempre foi o espaço onde eu poderia ser quem quisesse, falar o que quisesse, mostrar o meu mundo e contar as minhas histórias aos corajosos que aceitassem a jornada. É isso que faço hoje. Talvez seja uma história divertida que os entretenha de vez em quando, mas para mim é algo tão valioso que não poderia descrever. Posso parecer negligente quando me ausento, não posto, não respondo comentários. Não quero vir aqui e me redimir por qualquer destas coisas, mas uma coisa posso afirmar: Kalos nunca foi uma bobeira para mim. Ethron (minha primeira fanfic) nunca foi bobeira pra mim. Crescemos e mudamos. Hoje eu olho para trás e sinto orgulho, orgulho pra caralho. Eu sou muito feliz. Por mais que reclame, eu vivo meu sonho, eu sigo um caminho que talvez um dia não teria esperado, mas que me ensina coisas todos os dias. Eu vejo o mundo mudando, mas mudo com ele. Quanta coisa não mudou em seis anos? Como o Haos de seis anos atrás leria este capítulo?
Um dia estive preso como a Serena. Sentia-me estrangulado, asfixiado por bobeiras, por pressões estúpidas. A história da jornada de uma garota foi meu caminho, foi minha própria jornada. Até que eu tivesse a oportunidade de abrir as próprias asas. Foram dias, meses, anos, que pensei que nunca passariam. Como quis ter um botão para "avançar". Hoje, sinto que precisaria "parar". Tento segurar o relógio, mas os dias passam, as vidas passam, as histórias passam. E percebi que sou um espectador, eu nada mais posso fazer se não admirar cada instante e aproveitá-lo da maneira que sei: transformando tudo em palavras ou imagens - como em essas imensas notas que já não sei se alguém tem paciência de ler. Por fim, agradeço cada palavra de apoio de vocês até hoje, cada clique. Se essa história ajudou a me segurar em momentos tão cruciais, vocês estavam lá, incentivando. Liam, falavam, aplaudiam ou apontavam o que gostavam e desgostavam. Vocês, - leitores da aliança, leitores de fanfic, leitores de Pokémon, leitores de Kalos, - foram os primeiros a me incentivar a contar minhas histórias ao mundo. Vocês foram os primeiros a apoiar meu grande sonho. Eu gosto de contar histórias. Gosto de viver em mundos que só eu vivo. E percebi que quero passar minha vida as contando, convidando-os a ingressar nas jornadas mais malucas que puder. E, do fundo de meu coração, espero que vocês ainda tenham paciência de me ouvir contar essas histórias.
Meu mais sincero obrigado pelos seis anos. Vítor Siqueira/Haos Cyndaquil OBS: O aniversário é 17/01, mas Kalos está acostumada com meus parabéns atrasados
— Eu queria propor um brinde. —
disse o moço, se levantando. — Ao aniversariante da noite.
Os olhos se viraram animados para o
indicado, com uma série de gritos empolgados, alguns batendo na mesa. Olhares
incomodados se voltaram para o grupo no bar, mas ninguém estava em grandes
condições de se importar. A música estalava em uma batida de funk que só se
abafava pelas conversas atravessadas e barulhos de garrafas se tocando. Uma
série de copos foi levantada para o alto, em sequência.
— A gente já tá brindando desde as
nove da noite. — retorquiu o aniversariante.
— São 20 anos completos. —
argumentou a moça de cabelos cacheados ao seu lado. — Deveríamos brindar até o
vigésimo copo.
— Deus me livre. — comentou a
menina do outro lado, balançando o copo. — Mas quem me dera.
Após uma sequência de risadas, o
rapaz de pé levantou seu copo cheio novamente.
— Ao Vítor. — falou, animado.
— Ao Vítor. — concordaram os
outros, brindando.
O aniversariante tomou um gole. O
gosto já parecia bem mais amargo que às nove da noite. Fez uma careta, mas
sorriu, abraçando os amigos. Era seu dia, seu momento. A cena já se desenrolava
em ritmo reduzido, os barulhos abafando em um torpor que inevitavelmente fazia
um sorriso se abrir em seu rosto. Disparou palavras de afeto aos conhecidos,
agradecendo pela ocasião. Duas décadas.
...
Quando a porta do elevador se abriu
naquela manhã, ele não evitou um olhar arregalado. Tirou os óculos de sol e
conferiu as olheiras grossas e roxas em torno dos olhos avermelhados de sono. Haja pepino para tratar isso. A ideia de
usar boné para disfarçar os cabelos desajeitados também não parecia ter
funcionado perfeitamente. O moletom rosa por dentro da calça estava meio
amassado, mas ele sequer reparou naquilo ao vesti-lo.
Deu uma mordida no croissant tão pequena que pareceu mal
diminuir de tamanho. Ainda assim, mastigou tantas vezes que até perdeu a conta.
Tentava ignorar o cheiro da comida, que lhe revirava o estômago do dia
anterior. Tentou todas as chaves para abrir a porta de vidro da secretaria, mas
claramente apenas a última servira.
Sentou em sua cadeira, ligando o
computador. Encostou-se e respirou fundo, tentando ignorar o cheiro doce do
aromatizador de ambientes. 9:38. Nunca chegou tão atrasado – e olha que era
relativamente famoso por seus atrasos onde quer que fosse. Ainda tinha a
desculpa do aniversário, que poderia funcionar, caso alguém perguntasse.
Tomou um gole forçado de água por
impulso, tentando ajudar o salgado a descer. Em seguida, um gole de café bem
quente. Algum dos dois deveria ajudar.
Ouviu o som dos saltos batendo pelo
corredor. Por pouco não chegou depois da chefe – não que pudesse ter o luxo de
se orgulhar, mas atrasar a esse ponto seria vergonhoso. Ela usava um vestido
preto com uma estampa floral linda, em conjunto a um casaco de cor viva. Os
olhos brilhantes corriam pelo corredor, enquanto sua voz doce cumprimentava aqueles
que cruzavam seu caminho. A chefe pisou com passos tranquilos, enquanto enviava
um áudio pelo celular – segurado na mão direita, enquanto a esquerda estava
cheia de pastas e sua bolsa.
— Bom dia. — disse, levantando o
olhar o estagiário, em seguida esboçando uma expressão de susto. — Meu deus,
você tá bem?
O garoto não abaixou os óculos escuros,
recostando-se na cadeira.
— Já tive momentos melhores. —
respondeu com relativo delay, o tom
mais rouco que o usual.
Ela deu uma risada, colocando suas
coisas na mesa. Aproximou-se dele, botando as mãos na cintura.
— Quando eu fui embora você parecia
bem. — comentou.
— E eu tava. — disse o garoto,
tomando um gole de água. — O problema foi agora de manhã.
Ela deu uma risada de preencher o
ambiente e jogou alguns bilhetes na lixeira.
— Aniversário de segunda-feira
nunca é uma boa.
— Foi o
que aprendi esse ano. — murmurou, massageando sua testa. — Acho que eu tive o
pior encontro da minha vida depois do bar, mas eu já não tenho mais certeza.
A moça
balançou a cabeça sorrindo, em sinal de julgamento. Ajeitou a ordem das pastas
que acabara de trazer, logo as depositando na mesa do estagiário.
— Pode levar esses documentos pra
mim, por favor? Lá no setor de diplomas.
— Posso, claro. — falou Vítor,
pegando no mouse do computador. —
Espera só eu terminar de mexer nessas fotos.
Ela assentiu.
— São pro post do evento de vocês?
— Isso. — assentiu ele.
O garoto abriu os arquivos,
editando as fotos o mais rápido que conseguia. Contudo, sua mente estava em
relativo atraso. Ele tentava morder o croissant
vez ou outra, mas nunca teve tanta dificuldade de ingerir qualquer coisa
nos últimos tempos. Ainda assim, sequer tivera tempo de tomar café em casa.
Precisava forrar o estômago de algum jeito. Mais uma vez ouviu passos se
aproximando, agora um par de chinelos batendo até a porta da secretaria. A menina
de longos cabelos pretos passou pela porta transparente com sua calça larga
estampada, disparando:
— Amigo, já fez o post? — inquiriu,
só então fitando os óculos escuros do rapaz e sua expressão mórbida. — Meu deus
o que aconteceu com você?
— Bom dia. — respondeu Vítor,
irônico. — Não, amiga, tô mexendo com as fotos ainda.
— Ah, tudo bem. — ela assentiu,
olhando para a tela do computador. — O Lucas pediu pra eu perguntar se você já
terminou o checklist pras gravações
desse final de semana.
O garoto apoiou a cabeça no braço,
cansado.
— Faltam as barracas ainda. —
respondeu, tirando os óculos. — Eu já vou conseguir isso, vou correr atrás hoje
de tarde.
Ele mordeu o salgado, vendo a
garota levantar uma sobrancelha.
— Croissant? Achei que você não comia mais esse tipo de carboidrato.
— falou, em tom de deboche.
— Vítor! — repreendeu a chefe, só
então notando o culposo salgado engordurado.
— Hoje eu como. — balbuciou o
garoto.
Aquele dia em especial poderia ter
lhe dado uma trégua, mas o “pós-aniversário” nunca tem o mesmo glamour para autorizar isso.
Especialmente quando o aniversário coincide em um contexto de milhares de
acontecimentos ocorrendo simultaneamente na vida acadêmica. Por sorte, o rapaz
não tardou muito para melhorar seu ritmo. Os primeiros semestres universitários
ensinaram que água, remédio para enjoo e um pouco de comida resolviam qualquer
pós-festa. Ainda assim, sentiu que parte das pendências daquela terça ainda
estavam sem resolver.
Mas quando, afinal, ele sentia que
todas as pendências estavam resolvidas?
Chegou em casa às nove e pouco.
Esqueceu que ainda tinha agendado uma reunião após o jantar, o que o fez voltar
à casa mais tarde do que gostaria. Era seu dia de lavar roupas, mas a previsão
do tempo dizia que iria chover no dia seguinte, então de que adiantaria? A
pilha já estava maior que o cesto permitia; isso iria ter que esperar. Enquanto
tivesse roupa limpa poderia sobreviver.
Sentou-se na cadeira, quase caindo.
Respirou fundo e olhou para o teto por alguns segundos, enquanto retomava o ar.
Sabia que tinha escrito na agenda as últimas coisas que precisava realizar
antes de dormir. Ainda assim, pensou que merecia um relaxo de alguns minutos.
Abriu o feed de alguma rede social
para poder se ocupar com algo extra, mas era sempre atrapalhado pela
notificação das mensagens de algum grupo. As conversas já se estendiam a um
nível que o rapaz perdera o controle.
Ana (3 mensagens): Oi amigo, tudo
bem? Sei que tá atarefado, mas olha, achei uma referência legal pro nosso
trabalho de Roteiro. Assiste depois e me avisa, tá?
Crush (4 mensagens) : Oi. Queria te
ver, comemorar seu aniversário... Mas não vai dar, tô ocupado essa semana.
Desculpa :(
BFF (20 mensagens): AMIGO KKKKKK VC
NÃO SABEEE PRECISO TE CONTAR
Lucas (6 mensagens): Amigo, ainda não
conseguiu as barracas né? Tenho uma ideia de pra quem você pode perguntar. Vou
te mandar o contato.
Bia Figurino (4 mensagens): Preciso
que me passe a paleta de cores da diária do final de semana para eu poder selecionar
os figurinos, por favor.
Calourete (8 mensagens): Queria te
convidar pra assembleia do CA que faremos semana que vem, falando sobre o
posicionamento do curso diante das eleições. É bem importante!
Professora (2 mensagens): Oi,
querido. Pode me confirmar se a equipe de som vai nas entrevistas de sexta?
Chefe (3 mensagem): Vítor, só pra
lembrar que amanhã tenho reunião e chego mais tarde! Se rolar algo importante
pode me deixar um recado :)
Deutschkurs (15 mensagens) : Hallo
Leute! Não esqueçam que o Hausaufgabe de amanhã vale nota e deve ser entregue
em folha separada!
Nutricionista (1 mensagem): Olá,
Vítor. Nossa consulta está agendada para quinta às 10h. Confirma?
Mãe (4 mensagens): Oi filho... Tudo
bem? Faz tempo que não falo com você... Me liga quando der.
Operadora dos infernos (1 mensagem):
Atenção, sua conta com vencimento 20/09 não consta como paga. Por favor, efetue
o pagamento ou sua linha será cancelada.
O garoto jogou o aparelho na cama,
agitado. Por mais que seu corpo implorasse por descanso, sua cabeça trabalhava
a mil. Fazia semanas que não via as mensagens totalmente lidas, sem pendências.
Quando lia, sempre faltava responder alguém. Não fazia muito que tinha o sonho
de ter celular, quando mais novo. Era da geração que já cresceu sabendo da
existência do aparelho móvel, querendo poder “bater foto” de tudo e “jogar
joguinho”. Hoje, seu sonho era sumir com aquele dispositivo dos diabos. Ainda
assim, sua existência dependia quase intrinsicamente daquela droga digital.
Ele se jogou na cama. De que iria
adiantar tentar fazer mais coisas naquelas condições? No dia seguinte tiraria
um tempo a mais para resolver o que precisava de mais urgente. Isso. Merecia um
descanso, certo? Arrumou a cama da maneira que pôde e tomou um banho quente,
sentindo o jato de água estalando nas costas com gosto.
“Quando foi que a vida ficou tão complicada?”— perguntou-se, mentalmente.
...
Saiu do banho enrolado na toalha,
como era típico, toda noite. O vapor embaçou o espelho, de maneira que precisasse
esfregara mão molhada para conseguir se
ver melhor. Sentou na cama, pegando o celular. Abriu na conversa usual do grupo
de amigos, que já acumulava uma sequência de mensagens.
Lio: Gente vou só tomar uma ducha e
já to descendo na casa do Lu
Fer: Tamos esperando. Ana vem?
Ana: Yes. Vcs já tão bebendo ou vão
passar comprar alguma coisa no caminho?
O rapaz olhou o reflexo ao longe,
fitando os próprios olhos exaustos. Será que algum dia não teve olheiras?
Vítor: Gente, hoje eu não vou.
Após clicar “enviar”, aguardou
alguns segundos pela repressão.
Ana: QUE
Lucas: Hã
Fer: Ihhhh miado..
Vítor: Eu não tô muito bem. E
amanhã tem aula cedo.
Lio: Sim, eu tô nessa aula com vc.
Vamo, a gente não precisa voltar tarde.
Isa: Quinta de noite é nosso diaaaa
Vítor: Hoje não vai dar.
Ele soltou o aparelho na cama quase
como se estivesse pegando fogo. A tela voltou a acender, revelando as muitas mensagens
em sua resposta. Retirou forças não soube de onde para não lê-las e evitar o
reflexo de pegar o aparelho. Sempre parecia que era importante demais para
ignorar. Deu para trás quando uma nova conversa chamou sua atenção, todavia,
autorizando-se a voltar ao dispositivo.
???: Oi Haos.
Precisou de alguns segundos
encarando a tela do aparelho para assimilar aquela palavra de quatro letras. Há
quanto tempo não lhe dirigiam aquele nome? Alguém sequer se lembrava dele? Um
sentimento gostoso percorreu o corpo e, após ponderar, optou por responder,
ignorando as notificações das demais conversas.
Vítor: Oi. Quem é?
O número apareceu digitando.
???: Uma amiga antiga... Estava
pensando se você estava a fim de sair comer alguma coisa.
Vítor: Ah, hoje vai ser difícil...
Preciso resolver algumas coisas e amanhã cedo tenho que ir na aula. E vou
tentar passar na academia antes... Na verdade já deveria estar dormindo.
???: Por favor, prometo que vai ser
rápido... Eu estou com saudade.
Ele tinha ideia de quem poderia
ser. Isso o forçou a tomar forças para sair de casa. Não precisaria ir muito
longe, felizmente. A amiga concordou em encontrá-lo lá perto. O garoto não
caprichou muito nas roupas que escolheu – em questão de pouco tempo já iria
voltar dormir, mesmo. Por um momento ficou chateado de se despedir de sua cama.
Ela estava tão convidativa. Mais uma noite dormindo menos que seis horas. O
mito das oito horas de sono era com certeza a lenda de sua geração.
Chegou no lugar marcado e pegou uma
das mesas de madeira, sentando-se. De lá conseguia observar o movimento, via os
carros passando na rua, os demais universitários caminhando em direção ao happy hour, carregando garrafas já
meiadas e ouvindo música em volume alto. O ritmo até que fazia seus dedos
baterem em sincronia na mesa.
Ele a viu se aproximar, tocando-lhe
nas costas. Seus olhos não evitaram esboçar uma surpresa. Suas suspeitas foram
confirmadas, mas a moça parecia diferente da última vez. Seu estilo estava mais
refinado, ainda que mantivesse a mesma meiguice costumeira. Os olhos sempre
empolgados agora pareciam mais maduros, condizentes com sua idade. Seus cabelos
compridos divididos entre o azul e o rubro se distribuíam em belas mechas
presas atrás da cabeça. Ela se sentou, abrindo um sorriso.
— Oi… — murmurou o garoto. — Nossa.
Você tá diferente. — disse sem pensar.
— Eu não estou tão diferente assim.
— respondeu a amiga. — Você está.
Ele apoiou-se na mesa, ainda um
pouco surpreso.
— Meu deus quanto tempo faz? —
perguntou ele.
— Quase um ano. — falou ela, com um
sorriso sem graça.
Ele se jogou para trás, quase que
levando uma pancada.
— Tudo isso? Tem certeza? —
indagou.
A moça balançou a cabeça.
— Tenho. — respondeu, com
convicção.
Ela sabia mais que ninguém. O
menino corou, um pouco sem jeito. A garota mexeu as mãos, corrigindo-se.
— Eu não tô ofendida. — disse, com
uma risadinha. — Eu sei que não sou a única amiga que você não fala há meses.
Vítor sentiu-se ainda pior com o
comentário, dando uma risada constrangida.
— Não é. — concordou. — Desculpa,
eu me sinto mal por isso. Mas juro que nas férias…
— Você falou isso nas férias de
Julho também. — ela lançou um olhar de julgamento
— Justo.
Sabe quando você encontra uma
pessoa que outrora lhe foi muito especial, mas parece que a intimidade já não é
a mesma? Que os assuntos antes tão naturais agora pareciam íntimos demais para
tangenciar? Que medo temos disso. Que medo temos de um dia transformar um
coração meramente em um rosto conhecido. Quantos protagonistas nos caminhos de
nossa vida – e como nossa vida tem caminhos – não se tornam meros coadjuvantes
sem uma lógica explicação?
— O que você está olhando? —
perguntou a garota, com seus olhos profundos heterocromáticos.
O menino forçou um sorriso
encabulado.
— Por que as coisas não são mais as
mesmas com você? — perguntou, quase que como um suspiro.
— Porque você não é mais o mesmo. —
respondeu a moça com tranquilidade.
Ele aceitou as palavras, com uma
expressão perdida. Por um milésimo de segundo viu-se como um estranho naquele
espaço, como uma criança procurando pelos pais. Durou pouco, ele sabia onde
estava. Sabia onde seus pais estavam. Mas resquícios daquele sentimento ainda
lhe apertavam o peito olhando para aquela mulher.
A amiga se levantou, estendendo-lhe
uma mão.
— Pra onde nós vamos? — perguntou
ele.
— Viajar. — respondeu a moça com um
sorriso simpático.
Ele esqueceu como ela sorria.
Sorria como ninguém, em um ar reconfortante e familiar. Com leveza. O moço
sentiu seus músculos quase sendo puxadas para suas mãos, e em momento algum se
opôs. Levantou-se e caminhou com ela, deixando-a guiar o caminho. Era consumido
pelas palavras.
Não soube dizer em que momento o
cenário mudou. Parecia um sonho, quando os contextos mudam drasticamente sem
que se perceba, aceitando-se consumir apenas o motivo da transformação. Não era
como estavam lá, mas sim por que estavam.
Os prédios transformavam-se em
árvores retorcidas pela idade, em cores sazonais mágicas. O céu escuro fechado
se abria em uma noite estrelada onde ele podia avistar as mais diversas
constelações e sonhar com as criaturas desconhecidas escondidas na imensidão. Uma estrela cadente, faça um pedido. O
concreto esburacado da rua passava a ser um caminho de terra por entre as
flores mais belas que a estação podia proporcionar. O som dos carros aos poucos
se convertia a ruídos da noite, o que poderiam ser grilos, mas em um cantar
quase melódico e convidativo. Não tinha medo, pois sabia onde estava. Sentia o
aroma doce das flores que tinha o perfume que mais gostava. Sentiu os dedos
macios da garota deslizando por sua mão suada. Tentou reagir, mas ela levemente
soltava sua pele, deixando-o caminhar sozinho.
Haos desamarrou os cadarços de seus
tênis apertados, deixando-os de lado como se pudesse esquecê-los ali. Sentiu a
pele quente tocar a grama fofa, fazendo leves cócegas. Abriu os braços com a
brisa refrescante daquela noite, como há muito tempo não podia.
— Peguei. — disse ela, tocando-lhe
o ombro.
O menino saiu de seu transe após
alguns curtos momentos, tentando assimilar.
— Faz tempo que não brinco disso. —
falou com uma risadinha, disfarçando.
A moça colocou as mãos na cintura.
Ele continuou rindo de um jeito forçado, olhando para os lados levemente.
— Esqueceu que ninguém pode vê-lo
aqui? — indagou a moça.
O garoto ficou em silêncio. Olhou
mais uma vez para os lados e correu. Os primeiros passos foram desengonçados,
incertos. Mas logo retomou a corrida em um disparo, sem mais hesitação pelos
julgamentos. Correram livres pelo campo de flores, sozinhos. Ele conhecia cada
centímetro daquela terra. Ele já esteve lá muitas vezes, e sabia que ninguém iria
observá-los e julgá-los.
...
Encararam-se.
Ambos deveriam ter em torno dos
quatorze, quinze anos. Um garoto franzino, olhos castanhos curiosos e tímidos
ao mesmo tempo, e a menina de cabelos coloridos com as mãos atrás das costas.
Seus olhos eram das mesmas cores opostas do penteado. Eles sorriam, um tanto
sem jeito. Parecia o protocolo a seguir.
— Hm… Oi.
— Oi.
— Eu sou o Haos. — falou o garoto.
— Sou novo na Aliança.
A menina concordou com a cabeça
suavemente.
— Você é meio tímida. — comentou
ele. — Não vai nem me falar seu nome?
Ela nada disse, evitando fitá-lo
nos olhos. O menino não julgou, respeitou seu tempo.
— Tudo bem, vamos dar tempo ao
tempo. — disse, com empolgação. — Se não acredita em mim, pode perguntar pro
meu amigo, o Ethron! Nós trabalhamos juntos já faz um ano!!
A garota brincou com uma das mechas
de cabelo, enrolando-a nos dedos.
— As pessoas estão meio curiosas. —
comentou, singela.
— Sim. Mas todo mundo confia na
gente. — ele murmurou.
A garota olhou perdida para o céu,
suspirando.
— E qual será nossa história? —
perguntou, abrindo um sorriso ainda de papel, frágil.
Ele correspondeu.
— Ainda não sei. — disse. — Mas sei
que vai ser inesquecível.
E seria. Ela se chamava Kalos,
descobriu algum tempo depois. Tornaram-se amigos como as pétalas caídas
transpassam pelo rio – seguindo o fluxo, em seu tempo. Ela lhe apresentou os
castelos mais bonitos que ele teve o prazer de apreciar, tão majestosos que
jamais pensou que seria capaz de pisar lá; as maiores e mais movimentadas
cidades, tão brilhantes que transformavam a noite em dia com suas luzes
singulares; as praias mais límpidas, onde podia ver os próprios pés enquanto
pulava as ondas, admirando a imensidão azul encontrando o horizonte; as
montanhas gélidas mais frias, onde os flocos formavam desenhos e esculturas de
gelo; as cavernas onde os cristais brilhavam e reluziam feito espelhos; os
campos de flores mais cheirosos e tranquilos que jamais teve a oportunidade de
conhecer.
Compartilharam dos melhores e
piores dias.
Naquele, em especial, ele chorava,
sentado no escuro. Sentia a mão dela no ombro, mas os pingos escorriam como uma
tempestade que não poderia ser amansada com tão pouco. O respirar dela parecia
lhe dar mais motivos para permanecer ali, por mais que o fizesse em silêncio.
— Eu não aguento mais, Kalos. —
disse, engasgado.
— O que?
— Eu… Eu me sinto estagnado, sabe?
Ela passou a mão em suas costas,
com uma expressão afetada.
—. Parece que eu tô preso… Briguei
com meus amigos, briguei com minha família... Eu não… Eu preciso de espaço, eu
preciso respirar, e não consigo. Tem tanta coisa guardada e eu não consigo
soltar.
— Por que não vem comigo? —
perguntou ela, tentando levantá-lo. — Conheço um lugar ótimo pra tomarmos café!
Ele não aceitou ser puxado.
— Kalos, tudo isso é ótimo… Mas
mesmo quando você tenta me ajudar a esquecer, o problema continua.
Kalos baixou o olhar. Agachou até
ficar em sua altura e limpou suas lágrimas com os polegares. Ela não parecia
saber muito mais o que fazer, mas tinha ternura em seus olhos.
— Haos, eu não posso resolver seus
problemas. — falou, tímida. — Mas eu posso estar com você, independentemente
deles.
— E o que eu faço?
O silêncio preencheu a pausa.
— Nada se transforma do dia para a
noite. — ela disse. — Mas você pode amenizar a dor escrevendo.
Ele balançou a cabeça.
— Escrever igual sempre fez. —
incentivou.
— Como isso pode resolver qualquer
coisa?
— A dor existe, mas você é livre
para fazer o que quiser dela. — falou a moça, colocando um caderno e uma caneta
no chão, desgastados pelo uso.
Não foi do dia para a noite, mas
aos poucos ele conseguia ver quem Kalos lhe instigava: era uma moça de louros
cabelos, dourados e brilhantes; olhos azuis como o céu mais aberto e belo que
alguém poderia sonhar; um sorriso puro como o de uma criança pronta para
desbravar o mundo. As palavras ganhavam vida, as correntes eram arrastadas pelo
quarto, tentando se romper, em um grito no escuro que ninguém iria escutar, mas
que ecoava pelas paredes;
“Eu sinto que estou morta há
muito tempo, e quero renascer. Há muito tempo essa princesa cansou de esperar
pelo príncipe, cansou de pensar no mal como o ruim, cansou de ver sem
experimentar. Há uma linha tênue entre a vida e a morte, e a qualquer momento
ela pode ceder. Eu não quero esperar por este rompimento, quero aproveitar as
últimas oportunidades”
Sua jornada erguia-se aos poucos em
três pilares: os sonhos de uma criança em ver o mundo pela primeira vez, em
sentir as primeiras experiências e atribuir valor a cada sopro de sua vida; as
hesitações de conhecer um universo que lhe parece às vezes hostil, onde se
precisa esquecer do pré-concebido e retornar à pureza dos primeiros anos; e a
tentativa de avançar mesmo com os pesos do passado, independentemente das dores
e dos fantasmas, sem perder a chance de sorrir mais uma vez. Serena. Calem.
Charlie.
Observava aquela liberdade da
janela, admirava uma jornada que com certeza sonharia, na esperança de ter a
sua. Suas asas ainda eram pequenas demais, mas ele conseguia ajudar alguém a
voar independentemente delas. Ninguém lhe tiraria duas coisas: sua imaginação e
seus sonhos.
E Kalos lhe dava a mão. Trilhavam
cada rota, sentindo a textura de cada pedra desgastada amontoada no canto; as
gotas das tempestades mais violentas que percorriam o corpo molhado; ouviam o
farfalhar da grama conforme surgiam as criaturas mais fascinantes que o mundo
jamais veria, que poderiam ser um conjunto de pixels programado para qualquer um que avistasse: mas em seus olhos
o mundo ganhava a proporção que quisesse. Os mundanos tornavam-se heróis e, as
criaturas, guerreiros. Os sonhos nunca eram bobos demais ou grandes demais,
eles sempre tinham espaço. O impossível estava a algumas palavras mágicas de
distância.
Os ecos do real, todavia, sempre
estavam presentes em sua cabeça. Abria os olhos às vezes e se lembrava de onde
estava. Os cantos mágicos das aves lendárias tornavam-se piados; os grilos,
buzinas; as batalhas que sempre teriam o final que desejasse tornavam-se
imprevisíveis e perigosas, e a espada em sua mão era apenas um simples lápis,
pequeno demais para ser apontado de novo.
— Acho que precisaremos nos
esforçar para o próximo capítulo. — disse, segurando com firmeza as mãos de sua
amiga Kalos. — Vou precisar de mais algumas semanas.
Até as mãos tão firmes afrouxarem.
— Kalos, vou precisar ficar na
escola até de noite. Estou estudando para o vestibular. Nos vemos no final de
semana, ok? — falou, vendo os olhos compreensivos da moça esboçarem um tímido
concordar.
…até quase soltarem.
— Kalos, eu não passei na prova. —
ele socou a mesa. A moça segurava seu ombro, tentando abraçá-lo, mas ele não
permitiu, enquanto as lágrimas correram pelos olhos. — Eu vou continuar preso.
Eu não vou aguentar, eu não quero fazer tudo de novo.
Ela o abraçou, e assim ficaram. Tentou
memorizar o rosto do garoto, pois já o via tão vagamente que quase esquecera
sua feição. Os olhos brilhantes pareciam opacos e cansados. Os cabelos
desgrenhavam-se em tufos sem brilho. Ele já tinha aquelas grossas olheiras? E
desde quando lhe crescia barba? Aquelas espinhas com certeza não deveriam estar
ali aos montes. A cada vez, mais distantes, ele parecia diferente. Ela jamais o
confrontou: respeitou e falou que aguardaria. Acreditava que ele voltaria.
E ele voltou, tempos depois.
— Eu consegui, eu passei! —
exclamou, parecendo reganhar as luzes em suas pupilas. — Será minha vez de
começar uma jornada.
Ela festejou junto. Esperaram por
esse momento havia muito. Mas as promessas pareciam se distorcer com facilidade
conforme percebia seus dias mudando. O sorriso de Kalos não perdia seu brilho,
mas começava a se desfazer. Cada vez que acreditava em algo, passava a se
perguntar se de fato aquilo se tornaria realidade:
— Kalos, estou meio ocupado, mas é
só agora no começo. — falou. — Assim que puder voltamos a planejar coisas, ok?
Ok. Ela concordou. E ele voltava.
Os dois tinham resquícios de seus melhores dias pelos lugares mais belos
daquele místico continente, mas ele sempre parecia meio distante. Interrompiam
a viagem por causa de bobas mensagens no celular. Ele sumia da mesma maneira
que voltava, em um piscar de olhos.
— Eu não sei se sou bom pra estar
aqui na faculdade, Kalos. — falou, um dia, desabafando. — E se aqui não é meu
lugar?
Ela já não sabia o que dizer. Kalos
conhecia lindas paisagens, mas não era capaz de lidar com aquilo. Ela já havia
dado todos os conselhos que conhecia. Não podia ensiná-lo a cozinhar, não sabia
como mostrá-lo a pagar suas primeiras contas. Ela nunca precisou lidar com o
perigo das ruas que não fossem as de Lumiose, e com certeza não podia
consolá-lo de um relacionamento que partira seu coração.
O garoto precisou buscar aquelas
respostas sozinhos, longe do mundo que tanto lhe ensinou. Por mais que
questionasse às vezes seus novos passos, acreditou talvez fosse seu lugar
aquele em que precisava estar. Ele olhava para Kalos e sabia que gostava
daquilo que ela ensinou, ele amava contar histórias. Ela era testemunha.
— Kalos, as pessoas compartilharam
uma história que eu postei. — ele falou, empolgado. — Olha quanta gente viu!
Ela sorriu e o parabenizou, mas
seus olhos escondiam algo distante. Havia outra história? Por que ninguém nunca
a reconheceu daquela forma? De repente suas belezas naturais e seus velhos
contos de deuses da vida e da morte pareciam história de criança que todos já
não queriam mais ouvir. Haos dizia assim dela em outros tempos, estampava com
orgulho a página de seu blog aos amigos. Dizia com orgulho que participava de uma
Aliança, que era um autor, um ficwriter...
...mas, nas últimas semanas, ela
parecia uma amizade boba do passado, daquelas que não se confessa sem
constrangimento.
— O que é esse arquivo “AeXY” no
seu computador? — indagava alguém.
— Ah, é um arquivo velho. —
respondia Vítor, fechando a tela. — Devo ter esquecido de deletar.
Até que os meses, e mesmo anos, se
passaram.
— Kalos, eu fui chamado para uma
pesquisa!
Passaram.
— Kalos, eu vou começar um estágio!
Passaram.
— Kalos, me convidaram para fazer
um filme.
Passaram.
— Kalos, conversei com minha mãe, e
agora voltamos a nos falar normalmente.
Passaram tanto que ela se tornou um
arquivo nas profundezas do virtual. Um blog que os mais saudosistas visitavam
de vez em quando, esperando por uma novidade, um sinal de vida do autor. A moça
sabia que eles tinham momentos de vez em quando. Uma anotação, um parágrafo
perdido. Um desenho esquecido na gaveta que nunca veria a luz do dia. Mas os
outros não sabiam.
Pelo menos naquela noite, em meio a
um turbilhão, ele voltou. A moça via seus perdidos olhos castanhos correndo pelos
prédios iluminados de Lumiose, balançando a colher de metal pela xícara de café
preto. O vapor subia até seu rosto, perdendo-se no alto ao se dissipar. Kalos
tocou-lhe os dedos, resgatando-o para o presente.
— Eu estou feliz que você voltou. —
murmurou a moça.
— Desculpa. — ele falou.
Fungou o nariz.
— Eu não queria ter colocado você
para trás assim.
Era difícil decifrá-la na penumbra,
parecia estar no único ponto escuro da cidade, onde os flashes já não mais alcançavam e os postes deixavam de iluminar. Ouvia
sua respiração pesada, quase mais alta que todos os ruídos orquestrais da
cidade.
— Você precisou abrir mão da nossa
jornada — Kalos preencheu o silêncio. — para começar a sua própria. Eu estou
orgulhosa.
Kalos se levantou e virou de
costas. Não havia mais Lumiose, não havia prédios ou Prism Tower, não havia os rostos borrados no fundo e os gritos dos
pneus atravessando o asfalto. Havia só um quarto escuro e um silêncio
ensurdecedor; só um par de olhos cansados e pernas exaustas demais para dançar,
rendendo-se aos joelhos.
Ela sentiu seu corpo ser abraçado.
Braços trêmulos envolvendo seu corpo, com tanta força, como se quisesse
entrelaçar-se com sua alma. E sentiu gotas escorrendo pelas costas, não de
chuva, mas dos olhos fechados do rapaz tocando sua pele fina.
— Você foi minha jornada enquanto
eu não podia ter uma. — falou ele, a voz falhando. — Desculpe se eu me esqueço
disso às vezes.
Kalos se virou de frente a ele e
retribuiu o abraço. Os olhos escorreram, inundaram. Como as duas crianças
perdidas e reclusas, sonhando com uma aventura que não poderiam viver,
procurando consolo em um mundo onde poderiam ser tão grandes quanto almejassem.
Onde poderiam ser todos e, ao mesmo tempo, um rosto anônimo e desconhecido,
escondido nas sombras de um arco-íris.
— Você sempre vai ser minha melhor
jornada. — gaguejou Haos.
Kalos se afastou e encarou seus
olhos fundos, onde os fantasmas translúcidos do passado já não mais habitavam,
e abriam espaço para a sóbria opacidade de uma criança livre ao universo, mas
que perdera aonde poderia se segurar nas quedas que lhe ameaçavam. Passou os
dedos com um carinho que já não encontrava há muito tempo e desenhou um fino
sorriso no canto da boca, tão verdadeiro que mais uma lágrima se formou. Ela
passou o dedo indicador, limpando.
— Não precisa ter medo que eu
desapareça. — sussurrou a moça. — Eu sempre vou estar aqui.
Ela deu-lhe um beijo na testa.
— Você cresceu tanto...
Algo em si gritava que ela estava
para partir. Instintivamente o moço segurou-a com mais firmeza. O sorriso se abriu
como o sol primaveril após uma noite de tempestades, trazendo a luz e o calor
para as almas perdidas. Era como segurar água, que escorria pelos dedos e
respingava pelo chão.
— Me desculpe. — reiterou ele,
abrindo um choro como há muito não fazia. — Desculpe, desculpe, desculpe.
Ela tocou seu lábio com o
indicador, pedindo silêncio. O garoto desabava. Com o passar dos anos
aprendemos a controlar nossos instintos. O choro era um deles. Mas, uma vez que
se abria aquela porta, era difícil fechar. Apenas a paciência e tranquilidade
de Kalos conseguia acalentá-lo para que sua ofegante respiração se
transformasse em uma inspiração de paz.
— Quando as coisas apertaram, eu
estava aqui. — disse Kalos. — Se elas apertarem de novo, eu continuarei aqui. Senti
que você precisava que eu te lembrasse disso.
Ele tentou segurá-la.
— Continue aquilo que nós começamos
— pediu ela, com palavras que nunca esqueceria. — E conte as aventuras que seu
coração pede.
Ele não se lembrava mais como era
ser aquela criança. Os pensamentos outrora tão vivos tornavam-se memórias de
alguém que não mais morava naquele universo. Por isso sempre estava diferente. Sempre que voltava ao seu mundo,
olhava tudo com novos olhos. Poderia não ser mais os olhos de uma criança que
queria sair em sua primeira aventura...
...mas talvez os olhos de um adulto
que, em meio a tantos caminhos, sonhava com a inocência e singularidade dos
primeiros passos; que queria se lembrar como era aquele trajeto que tanto fez
que até esqueceu da mágica. Como amava aquela terra. Como não poderia? Era sua
própria jornada que contava, eram seus sentimentos perdidos que ali estavam.
Eram seus sonhos abertos a quem tivesse paciência e coragem de ler.
Sabia que o mundo mudava. Os dias
se passaram com tanta velocidade que se arrependeu de um dia querer avançá-los.
Como odiou, no passado, aqueles que diziam que era horrível crescer. Seu maior sonho era crescer, parecia um
desperdício dizê-lo. Agora era ele que dizia aos céus que gostaria de ter
demorado mais para crescer. O crescimento é como uma flor se abrindo: parece
tão fluido que só percebemos que aconteceu tempos depois, olhando para o jardim
e pensando “faz tempo que isso aconteceu?
Passo aqui todo dia e esqueci de conferir”
Depois de um tempo, foi capaz de
compreender e entender. Com as grandes responsabilidades veio sua liberdade, e
com a liberdade lhe vieram as responsabilidades. Com a maturidade vieram as
incertezas, e com as incertezas veio a maturidade. Não era um ponto, mas um
conjunto de vírgulas, um amontoado de paradoxos e um eterno ciclo. Era essa a
beleza do viver: não chegar a um ponto, mas aproveitar a sua jornada, cada uma
das cidades, cada um dos amigos, cada uma das rotas.
Como em um
jogo.
Ele se transformou, mas não
abandonou seu eu antigo. Ele nunca saiu de lá. Apenas custava um pouco deixá-lo
falar às vezes. As memórias não sumiram, elas estavam vivas e quentes em seu
coração, em um lugar onde colecionava tudo com muito carinho. Era no passado que
se encontrava não as respostas do futuro, mas sim a coragem para procurá-las. Suas
histórias estavam todas lá, apenas aguardando para serem escritas. E ele queria
contá-las. Kalos mostrou isso. Ele precisava
contá-las.
Faltava apenas abrir os olhos, mas
permitiu-se ficar assim mais um pouquinho. Poderia voltar para aquele mundo quando
quisesse, não se esquecia. Poderia demorar. Mas ele sempre voltava, pois era na
fantasia de suas histórias que eternizava a verdade de seu coração. Quase
sentia sua pele brilhar, envolvida em um brilho prateado.
What?
CYNDAQUIL is evolving!
E abriu os olhos, pois ainda tinha
uma longa jornada pela frente.