Jan 20, 2019

Notas do Autor - Especial de Aniversário



"Tome este beijo sobre tua testa!
E, desvencilhando-me de ti agora,
Permita-me confessar -

Não erras, ao supor

Que meus dias têm sido um sonho;

Ainda se a esperança esvaiu-se

Numa noite, ou num dia,
Numa visão, ou em nenhuma,
Tudo aquilo que vemos ou nos parece
Nada mais é do que um sonho dentro de um sonho.


Permaneço em meio ao bramido

Da costa atormentada pelas ondas,

E seguro em minha mão

Grãos dourados de areia-

Quão poucos! e contudo como arrepiam
Por entre meus dedos às profundezas,
Enquanto choro -
Enquanto choro!
Oh Deus! não posso eu segurá-los
De punho mais firme?
Oh Deus! 
Não posso salvar
Um único da onda impiedosa?
Tudo aquilo que vemos ou nos parece
Nada mais é do que um sonho dentro de um sonho."

A Dream Within a Dream
Edgar Allan Poe

Abro este especial com um poema muito, muito querido para mim. Chama-se "A Dream Within a Dream", de Edgar Allan Poe, e penso que sua melancolia e simbolismos se encaixam muito bem com nossa ocasião.

Lembro quando comemorar aniversário dos blogs era um evento. Merecia postagem, episódio especial, artes, capítulos... Parece com nossos aniversários. No começo fazemos festa, bolo, presentes, convites, enfeites... E, conforme os anos passam, as comemorações ficam mais singelas. Às vezes passamos batido, sequer. "A gente comemora outro dia.". Desta vez, como uma espécie de presente, deixo um especial que não sei bem dizer de onde surgiu. Ele apenas me ocorreu e eu precisei transpô-lo para o papel, como há muito não tenho feito - quando foi que paramos de fazer isso?

Lê-lo não irá afetar diretamente na história, logo, não se sintam intimados a fazê-lo. Por esse mesmo motivo, não pouparei "spoilers" da leitura, pois sequer é uma história a ser continuada. É simplesmente uma necessidade que tive. Se resolver ler, espero que possa fazer isso com o coração aberto, lendo cada palavra com muito carinho, pois com certeza não é uma história que se faz em diálogos, mas no peso de cada sentimento. Essa história é um presente para Kalos, e com certeza será lida com outros olhos por aqueles que se identificam com os parágrafos.

Nos últimos tempos tenho estado um tanto pensativo. Sobre mim, sobre as coisas, sobre os capítulos curiosos que já passei. Há meses que Kalos está desativada. É estranho, pois ela ocorre em meus pensamentos mais que corriqueiramente. Mas eu sempre estou ocupado. Trabalho da faculdade. Estágio. Projeto extra. Confraternização. Sabe aquele velho amigo que você não conversa há anos, por mais que ele esteja fresco em suas memórias? Depois de tempos vocês conseguem conciliar de se encontrar. "Como assim você tá trabalhando fora?" "Pois é, faz uns anos... Você tá namorando, né? Vi foto" "Não, não... Nós terminamos, já, haha".

Foi um especial denso e longo, não quero forçá-los a ler nada. Não é sobre uma jornada maluca com batalhas frenéticas, mas um turbilhão de pensamentos que eu nunca havia escrito antes. É só que... Senti que precisava ser verdadeiro. Grande parte dos leitores (que ainda não me abandonaram, e eu os amo por isso), amigos, autores que por aqui vem... Estão provavelmente nessa fase. Nessa transição. Tantos leitores nos deixaram por isso, talvez. Tiveram que largar os consoles, sair um pouco do mundo Pokémon. O mundo real os chamou. Ele chama todos nós até que fique impossível não ouvir.

Espero que não procurem pela lógica de uma maneira absurda. A intenção era justamente trazer um sentimento onírico, em que as coisas mudam de forma, tempo e lugar como em nossa cabeça. Não como acontecem, mas porque acontecem. A ideia de personificar um blog já havia sido muuuito abordada pelo Canas em Sinnoh algum tempo atrás. Emprestei sua inspiração para trazer esse especial e espero conseguir ter captado a essência.

Pode parecer um drama bobo, uma sofrência eterna, forçado, clichê... Mas eu precisava de cada uma daquelas palavras escritas da forma que estão. Acho que nunca fui tão explicitamente verdadeiro, mas ao mesmo tempo fiz o que sempre fiz. Aqui sempre foi o espaço onde eu poderia ser quem quisesse, falar o que quisesse, mostrar o meu mundo e contar as minhas histórias aos corajosos que aceitassem a jornada. É isso que faço hoje. Talvez seja uma história divertida que os entretenha de vez em quando, mas para mim é algo tão valioso que não poderia descrever. Posso parecer negligente quando me ausento, não posto, não respondo comentários. Não quero vir aqui e me redimir por qualquer destas coisas, mas uma coisa posso afirmar: Kalos nunca foi uma bobeira para mim. Ethron (minha primeira fanfic) nunca foi bobeira pra mim.

Crescemos e mudamos. Hoje eu olho para trás e sinto orgulho, orgulho pra caralho. Eu sou muito feliz. Por mais que reclame, eu vivo meu sonho, eu sigo um caminho que talvez um dia não teria esperado, mas que me ensina coisas todos os dias. Eu vejo o mundo mudando, mas mudo com ele. Quanta coisa não mudou em seis anos? Como o Haos de seis anos atrás leria este capítulo? 

Um dia estive preso como a Serena. Sentia-me estrangulado, asfixiado por bobeiras, por pressões estúpidas. A história da jornada de uma garota foi meu caminho, foi minha própria jornada. Até que eu tivesse a oportunidade de abrir as próprias asas. Foram dias, meses, anos, que pensei que nunca passariam. Como quis ter um botão para "avançar". Hoje, sinto que precisaria "parar". Tento segurar o relógio, mas os dias passam, as vidas passam, as histórias passam. E percebi que sou um espectador, eu nada mais posso fazer se não admirar cada instante e aproveitá-lo da maneira que sei: transformando tudo em palavras ou imagens - como em essas imensas notas que já não sei se alguém tem paciência de ler.

Por fim, agradeço cada palavra de apoio de vocês até hoje, cada clique. Se essa história ajudou a me segurar em momentos tão cruciais, vocês estavam lá, incentivando. Liam, falavam, aplaudiam ou apontavam o que gostavam e desgostavam. Vocês, - leitores da aliança, leitores de fanfic, leitores de Pokémon, leitores de Kalos, - foram os primeiros a me incentivar a contar minhas histórias ao mundo. Vocês foram os primeiros a apoiar meu grande sonho. Eu gosto de contar histórias. Gosto de viver em mundos que só eu vivo. E percebi que quero passar minha vida as contando, convidando-os a ingressar nas jornadas mais malucas que puder. E, do fundo de meu coração, espero que vocês ainda tenham paciência de me ouvir contar essas histórias.

Meu mais sincero obrigado pelos seis anos.
Vítor Siqueira/Haos Cyndaquil

OBS: O aniversário é 17/01, mas Kalos está acostumada com meus parabéns atrasados

Um Sonho Dentro de um Sonho (Especial de Aniversário)



Um Sonho Dentro de Um Sonho

— Eu queria propor um brinde. — disse o moço, se levantando. — Ao aniversariante da noite.
Os olhos se viraram animados para o indicado, com uma série de gritos empolgados, alguns batendo na mesa. Olhares incomodados se voltaram para o grupo no bar, mas ninguém estava em grandes condições de se importar. A música estalava em uma batida de funk que só se abafava pelas conversas atravessadas e barulhos de garrafas se tocando. Uma série de copos foi levantada para o alto, em sequência.
— A gente já tá brindando desde as nove da noite. — retorquiu o aniversariante.
— São 20 anos completos. — argumentou a moça de cabelos cacheados ao seu lado. — Deveríamos brindar até o vigésimo copo.
— Deus me livre. — comentou a menina do outro lado, balançando o copo. — Mas quem me dera.
Após uma sequência de risadas, o rapaz de pé levantou seu copo cheio novamente.
— Ao Vítor. — falou, animado.
— Ao Vítor. — concordaram os outros, brindando.
O aniversariante tomou um gole. O gosto já parecia bem mais amargo que às nove da noite. Fez uma careta, mas sorriu, abraçando os amigos. Era seu dia, seu momento. A cena já se desenrolava em ritmo reduzido, os barulhos abafando em um torpor que inevitavelmente fazia um sorriso se abrir em seu rosto. Disparou palavras de afeto aos conhecidos, agradecendo pela ocasião. Duas décadas.
...
Quando a porta do elevador se abriu naquela manhã, ele não evitou um olhar arregalado. Tirou os óculos de sol e conferiu as olheiras grossas e roxas em torno dos olhos avermelhados de sono. Haja pepino para tratar isso. A ideia de usar boné para disfarçar os cabelos desajeitados também não parecia ter funcionado perfeitamente. O moletom rosa por dentro da calça estava meio amassado, mas ele sequer reparou naquilo ao vesti-lo.
Deu uma mordida no croissant tão pequena que pareceu mal diminuir de tamanho. Ainda assim, mastigou tantas vezes que até perdeu a conta. Tentava ignorar o cheiro da comida, que lhe revirava o estômago do dia anterior. Tentou todas as chaves para abrir a porta de vidro da secretaria, mas claramente apenas a última servira.
Sentou em sua cadeira, ligando o computador. Encostou-se e respirou fundo, tentando ignorar o cheiro doce do aromatizador de ambientes. 9:38. Nunca chegou tão atrasado – e olha que era relativamente famoso por seus atrasos onde quer que fosse. Ainda tinha a desculpa do aniversário, que poderia funcionar, caso alguém perguntasse.
Tomou um gole forçado de água por impulso, tentando ajudar o salgado a descer. Em seguida, um gole de café bem quente. Algum dos dois deveria ajudar.
Ouviu o som dos saltos batendo pelo corredor. Por pouco não chegou depois da chefe – não que pudesse ter o luxo de se orgulhar, mas atrasar a esse ponto seria vergonhoso. Ela usava um vestido preto com uma estampa floral linda, em conjunto a um casaco de cor viva. Os olhos brilhantes corriam pelo corredor, enquanto sua voz doce cumprimentava aqueles que cruzavam seu caminho. A chefe pisou com passos tranquilos, enquanto enviava um áudio pelo celular – segurado na mão direita, enquanto a esquerda estava cheia de pastas e sua bolsa.
— Bom dia. — disse, levantando o olhar o estagiário, em seguida esboçando uma expressão de susto. — Meu deus, você tá bem?
O garoto não abaixou os óculos escuros, recostando-se na cadeira.
— Já tive momentos melhores. — respondeu com relativo delay, o tom mais rouco que o usual.
Ela deu uma risada, colocando suas coisas na mesa. Aproximou-se dele, botando as mãos na cintura.
— Quando eu fui embora você parecia bem. — comentou.
— E eu tava. — disse o garoto, tomando um gole de água. — O problema foi agora de manhã.
Ela deu uma risada de preencher o ambiente e jogou alguns bilhetes na lixeira.
— Aniversário de segunda-feira nunca é uma boa.
— Foi o que aprendi esse ano. — murmurou, massageando sua testa. — Acho que eu tive o pior encontro da minha vida depois do bar, mas eu já não tenho mais certeza.
A moça balançou a cabeça sorrindo, em sinal de julgamento. Ajeitou a ordem das pastas que acabara de trazer, logo as depositando na mesa do estagiário.
— Pode levar esses documentos pra mim, por favor? Lá no setor de diplomas.
— Posso, claro. — falou Vítor, pegando no mouse do computador. — Espera só eu terminar de mexer nessas fotos.
Ela assentiu.
— São pro post do evento de vocês?
— Isso. — assentiu ele.
O garoto abriu os arquivos, editando as fotos o mais rápido que conseguia. Contudo, sua mente estava em relativo atraso. Ele tentava morder o croissant vez ou outra, mas nunca teve tanta dificuldade de ingerir qualquer coisa nos últimos tempos. Ainda assim, sequer tivera tempo de tomar café em casa. Precisava forrar o estômago de algum jeito. Mais uma vez ouviu passos se aproximando, agora um par de chinelos batendo até a porta da secretaria. A menina de longos cabelos pretos passou pela porta transparente com sua calça larga estampada, disparando:
— Amigo, já fez o post? — inquiriu, só então fitando os óculos escuros do rapaz e sua expressão mórbida. — Meu deus o que aconteceu com você?
— Bom dia. — respondeu Vítor, irônico. — Não, amiga, tô mexendo com as fotos ainda.
— Ah, tudo bem. — ela assentiu, olhando para a tela do computador. — O Lucas pediu pra eu perguntar se você já terminou o checklist pras gravações desse final de semana.
O garoto apoiou a cabeça no braço, cansado.
— Faltam as barracas ainda. — respondeu, tirando os óculos. — Eu já vou conseguir isso, vou correr atrás hoje de tarde.
Ele mordeu o salgado, vendo a garota levantar uma sobrancelha.
Croissant? Achei que você não comia mais esse tipo de carboidrato. — falou, em tom de deboche.
— Vítor! — repreendeu a chefe, só então notando o culposo salgado engordurado.
— Hoje eu como. — balbuciou o garoto.
Aquele dia em especial poderia ter lhe dado uma trégua, mas o “pós-aniversário” nunca tem o mesmo glamour para autorizar isso. Especialmente quando o aniversário coincide em um contexto de milhares de acontecimentos ocorrendo simultaneamente na vida acadêmica. Por sorte, o rapaz não tardou muito para melhorar seu ritmo. Os primeiros semestres universitários ensinaram que água, remédio para enjoo e um pouco de comida resolviam qualquer pós-festa. Ainda assim, sentiu que parte das pendências daquela terça ainda estavam sem resolver.
Mas quando, afinal, ele sentia que todas as pendências estavam resolvidas?
Chegou em casa às nove e pouco. Esqueceu que ainda tinha agendado uma reunião após o jantar, o que o fez voltar à casa mais tarde do que gostaria. Era seu dia de lavar roupas, mas a previsão do tempo dizia que iria chover no dia seguinte, então de que adiantaria? A pilha já estava maior que o cesto permitia; isso iria ter que esperar. Enquanto tivesse roupa limpa poderia sobreviver.
Sentou-se na cadeira, quase caindo. Respirou fundo e olhou para o teto por alguns segundos, enquanto retomava o ar. Sabia que tinha escrito na agenda as últimas coisas que precisava realizar antes de dormir. Ainda assim, pensou que merecia um relaxo de alguns minutos. Abriu o feed de alguma rede social para poder se ocupar com algo extra, mas era sempre atrapalhado pela notificação das mensagens de algum grupo. As conversas já se estendiam a um nível que o rapaz perdera o controle.
Ana (3 mensagens): Oi amigo, tudo bem? Sei que tá atarefado, mas olha, achei uma referência legal pro nosso trabalho de Roteiro. Assiste depois e me avisa, tá?
Crush (4 mensagens) : Oi. Queria te ver, comemorar seu aniversário... Mas não vai dar, tô ocupado essa semana. Desculpa :(
BFF (20 mensagens): AMIGO KKKKKK VC NÃO SABEEE PRECISO TE CONTAR
Lucas (6 mensagens): Amigo, ainda não conseguiu as barracas né? Tenho uma ideia de pra quem você pode perguntar. Vou te mandar o contato.
Bia Figurino (4 mensagens): Preciso que me passe a paleta de cores da diária do final de semana para eu poder selecionar os figurinos, por favor.
Calourete (8 mensagens): Queria te convidar pra assembleia do CA que faremos semana que vem, falando sobre o posicionamento do curso diante das eleições. É bem importante!
Professora (2 mensagens): Oi, querido. Pode me confirmar se a equipe de som vai nas entrevistas de sexta?
Chefe (3 mensagem): Vítor, só pra lembrar que amanhã tenho reunião e chego mais tarde! Se rolar algo importante pode me deixar um recado :)
Deutschkurs (15 mensagens) : Hallo Leute! Não esqueçam que o Hausaufgabe de amanhã vale nota e deve ser entregue em folha separada!
Nutricionista (1 mensagem): Olá, Vítor. Nossa consulta está agendada para quinta às 10h. Confirma?
Mãe (4 mensagens): Oi filho... Tudo bem? Faz tempo que não falo com você... Me liga quando der.
Operadora dos infernos (1 mensagem): Atenção, sua conta com vencimento 20/09 não consta como paga. Por favor, efetue o pagamento ou sua linha será cancelada.
O garoto jogou o aparelho na cama, agitado. Por mais que seu corpo implorasse por descanso, sua cabeça trabalhava a mil. Fazia semanas que não via as mensagens totalmente lidas, sem pendências. Quando lia, sempre faltava responder alguém. Não fazia muito que tinha o sonho de ter celular, quando mais novo. Era da geração que já cresceu sabendo da existência do aparelho móvel, querendo poder “bater foto” de tudo e “jogar joguinho”. Hoje, seu sonho era sumir com aquele dispositivo dos diabos. Ainda assim, sua existência dependia quase intrinsicamente daquela droga digital.
Ele se jogou na cama. De que iria adiantar tentar fazer mais coisas naquelas condições? No dia seguinte tiraria um tempo a mais para resolver o que precisava de mais urgente. Isso. Merecia um descanso, certo? Arrumou a cama da maneira que pôde e tomou um banho quente, sentindo o jato de água estalando nas costas com gosto.
Quando foi que a vida ficou tão complicada?”  — perguntou-se, mentalmente.
...
Saiu do banho enrolado na toalha, como era típico, toda noite. O vapor embaçou o espelho, de maneira que precisasse esfregar  a mão molhada para conseguir se ver melhor. Sentou na cama, pegando o celular. Abriu na conversa usual do grupo de amigos, que já acumulava uma sequência de mensagens.
Lio: Gente vou só tomar uma ducha e já to descendo na casa do Lu
Fer: Tamos esperando. Ana vem?
Ana: Yes. Vcs já tão bebendo ou vão passar comprar alguma coisa no caminho?
O rapaz olhou o reflexo ao longe, fitando os próprios olhos exaustos. Será que algum dia não teve olheiras?
Vítor: Gente, hoje eu não vou.
Após clicar “enviar”, aguardou alguns segundos pela repressão.
Ana: QUE
Lucas: Hã
Fer: Ihhhh miado..
Vítor: Eu não tô muito bem. E amanhã tem aula cedo.
Lio: Sim, eu tô nessa aula com vc. Vamo, a gente não precisa voltar tarde.
Isa: Quinta de noite é nosso diaaaa
Vítor: Hoje não vai dar.
Ele soltou o aparelho na cama quase como se estivesse pegando fogo. A tela voltou a acender, revelando as muitas mensagens em sua resposta. Retirou forças não soube de onde para não lê-las e evitar o reflexo de pegar o aparelho. Sempre parecia que era importante demais para ignorar. Deu para trás quando uma nova conversa chamou sua atenção, todavia, autorizando-se a voltar ao dispositivo.
???: Oi Haos.
Precisou de alguns segundos encarando a tela do aparelho para assimilar aquela palavra de quatro letras. Há quanto tempo não lhe dirigiam aquele nome? Alguém sequer se lembrava dele? Um sentimento gostoso percorreu o corpo e, após ponderar, optou por responder, ignorando as notificações das demais conversas.
Vítor: Oi. Quem é?
O número apareceu digitando.
???: Uma amiga antiga... Estava pensando se você estava a fim de sair comer alguma coisa.
Vítor: Ah, hoje vai ser difícil... Preciso resolver algumas coisas e amanhã cedo tenho que ir na aula. E vou tentar passar na academia antes... Na verdade já deveria estar dormindo.
???: Por favor, prometo que vai ser rápido... Eu estou com saudade.
Ele tinha ideia de quem poderia ser. Isso o forçou a tomar forças para sair de casa. Não precisaria ir muito longe, felizmente. A amiga concordou em encontrá-lo lá perto. O garoto não caprichou muito nas roupas que escolheu – em questão de pouco tempo já iria voltar dormir, mesmo. Por um momento ficou chateado de se despedir de sua cama. Ela estava tão convidativa. Mais uma noite dormindo menos que seis horas. O mito das oito horas de sono era com certeza a lenda de sua geração.
Chegou no lugar marcado e pegou uma das mesas de madeira, sentando-se. De lá conseguia observar o movimento, via os carros passando na rua, os demais universitários caminhando em direção ao happy hour, carregando garrafas já meiadas e ouvindo música em volume alto. O ritmo até que fazia seus dedos baterem em sincronia na mesa.
Ele a viu se aproximar, tocando-lhe nas costas. Seus olhos não evitaram esboçar uma surpresa. Suas suspeitas foram confirmadas, mas a moça parecia diferente da última vez. Seu estilo estava mais refinado, ainda que mantivesse a mesma meiguice costumeira. Os olhos sempre empolgados agora pareciam mais maduros, condizentes com sua idade. Seus cabelos compridos divididos entre o azul e o rubro se distribuíam em belas mechas presas atrás da cabeça. Ela se sentou, abrindo um sorriso.
— Oi… — murmurou o garoto. — Nossa. Você tá diferente. — disse sem pensar.
— Eu não estou tão diferente assim. — respondeu a amiga. — Você está.
Ele apoiou-se na mesa, ainda um pouco surpreso.
— Meu deus quanto tempo faz? — perguntou ele.
— Quase um ano. — falou ela, com um sorriso sem graça.
Ele se jogou para trás, quase que levando uma pancada.
— Tudo isso? Tem certeza? — indagou.
A moça balançou a cabeça.
— Tenho. — respondeu, com convicção.
Ela sabia mais que ninguém. O menino corou, um pouco sem jeito. A garota mexeu as mãos, corrigindo-se.
— Eu não tô ofendida. — disse, com uma risadinha. — Eu sei que não sou a única amiga que você não fala há meses.
Vítor sentiu-se ainda pior com o comentário, dando uma risada constrangida.
— Não é. — concordou. — Desculpa, eu me sinto mal por isso. Mas juro que nas férias…
— Você falou isso nas férias de Julho também. — ela lançou um olhar de julgamento
— Justo.
Sabe quando você encontra uma pessoa que outrora lhe foi muito especial, mas parece que a intimidade já não é a mesma? Que os assuntos antes tão naturais agora pareciam íntimos demais para tangenciar? Que medo temos disso. Que medo temos de um dia transformar um coração meramente em um rosto conhecido. Quantos protagonistas nos caminhos de nossa vida – e como nossa vida tem caminhos – não se tornam meros coadjuvantes sem uma lógica explicação?
— O que você está olhando? — perguntou a garota, com seus olhos profundos heterocromáticos.
O menino forçou um sorriso encabulado.
— Por que as coisas não são mais as mesmas com você? — perguntou, quase que como um suspiro.
— Porque você não é mais o mesmo. — respondeu a moça com tranquilidade.
Ele aceitou as palavras, com uma expressão perdida. Por um milésimo de segundo viu-se como um estranho naquele espaço, como uma criança procurando pelos pais. Durou pouco, ele sabia onde estava. Sabia onde seus pais estavam. Mas resquícios daquele sentimento ainda lhe apertavam o peito olhando para aquela mulher.
A amiga se levantou, estendendo-lhe uma mão.
— Pra onde nós vamos? — perguntou ele.
— Viajar. — respondeu a moça com um sorriso simpático.
Ele esqueceu como ela sorria. Sorria como ninguém, em um ar reconfortante e familiar. Com leveza. O moço sentiu seus músculos quase sendo puxadas para suas mãos, e em momento algum se opôs. Levantou-se e caminhou com ela, deixando-a guiar o caminho. Era consumido pelas palavras.
Não soube dizer em que momento o cenário mudou. Parecia um sonho, quando os contextos mudam drasticamente sem que se perceba, aceitando-se consumir apenas o motivo da transformação. Não era como estavam lá, mas sim por que estavam.
Os prédios transformavam-se em árvores retorcidas pela idade, em cores sazonais mágicas. O céu escuro fechado se abria em uma noite estrelada onde ele podia avistar as mais diversas constelações e sonhar com as criaturas desconhecidas escondidas na imensidão. Uma estrela cadente, faça um pedido. O concreto esburacado da rua passava a ser um caminho de terra por entre as flores mais belas que a estação podia proporcionar. O som dos carros aos poucos se convertia a ruídos da noite, o que poderiam ser grilos, mas em um cantar quase melódico e convidativo. Não tinha medo, pois sabia onde estava. Sentia o aroma doce das flores que tinha o perfume que mais gostava. Sentiu os dedos macios da garota deslizando por sua mão suada. Tentou reagir, mas ela levemente soltava sua pele, deixando-o caminhar sozinho.
Haos desamarrou os cadarços de seus tênis apertados, deixando-os de lado como se pudesse esquecê-los ali. Sentiu a pele quente tocar a grama fofa, fazendo leves cócegas. Abriu os braços com a brisa refrescante daquela noite, como há muito tempo não podia.
— Peguei. — disse ela, tocando-lhe o ombro.
O menino saiu de seu transe após alguns curtos momentos, tentando assimilar.
— Faz tempo que não brinco disso. — falou com uma risadinha, disfarçando.
A moça colocou as mãos na cintura. Ele continuou rindo de um jeito forçado, olhando para os lados levemente.
— Esqueceu que ninguém pode vê-lo aqui? — indagou a moça.
O garoto ficou em silêncio. Olhou mais uma vez para os lados e correu. Os primeiros passos foram desengonçados, incertos. Mas logo retomou a corrida em um disparo, sem mais hesitação pelos julgamentos. Correram livres pelo campo de flores, sozinhos. Ele conhecia cada centímetro daquela terra. Ele já esteve lá muitas vezes, e sabia que ninguém iria observá-los e julgá-los.
...
Encararam-se.
Ambos deveriam ter em torno dos quatorze, quinze anos. Um garoto franzino, olhos castanhos curiosos e tímidos ao mesmo tempo, e a menina de cabelos coloridos com as mãos atrás das costas. Seus olhos eram das mesmas cores opostas do penteado. Eles sorriam, um tanto sem jeito. Parecia o protocolo a seguir.
— Hm… Oi.
— Oi.
— Eu sou o Haos. — falou o garoto. — Sou novo na Aliança.
A menina concordou com a cabeça suavemente.
— Você é meio tímida. — comentou ele. — Não vai nem me falar seu nome?
Ela nada disse, evitando fitá-lo nos olhos. O menino não julgou, respeitou seu tempo.
— Tudo bem, vamos dar tempo ao tempo. — disse, com empolgação. — Se não acredita em mim, pode perguntar pro meu amigo, o Ethron! Nós trabalhamos juntos já faz um ano!!
A garota brincou com uma das mechas de cabelo, enrolando-a nos dedos.
— As pessoas estão meio curiosas. — comentou, singela.
— Sim. Mas todo mundo confia na gente. — ele murmurou.
A garota olhou perdida para o céu, suspirando.
— E qual será nossa história? — perguntou, abrindo um sorriso ainda de papel, frágil.
Ele correspondeu.
— Ainda não sei. — disse. — Mas sei que vai ser inesquecível.
E seria. Ela se chamava Kalos, descobriu algum tempo depois. Tornaram-se amigos como as pétalas caídas transpassam pelo rio – seguindo o fluxo, em seu tempo. Ela lhe apresentou os castelos mais bonitos que ele teve o prazer de apreciar, tão majestosos que jamais pensou que seria capaz de pisar lá; as maiores e mais movimentadas cidades, tão brilhantes que transformavam a noite em dia com suas luzes singulares; as praias mais límpidas, onde podia ver os próprios pés enquanto pulava as ondas, admirando a imensidão azul encontrando o horizonte; as montanhas gélidas mais frias, onde os flocos formavam desenhos e esculturas de gelo; as cavernas onde os cristais brilhavam e reluziam feito espelhos; os campos de flores mais cheirosos e tranquilos que jamais teve a oportunidade de conhecer.
Compartilharam dos melhores e piores dias.
Naquele, em especial, ele chorava, sentado no escuro. Sentia a mão dela no ombro, mas os pingos escorriam como uma tempestade que não poderia ser amansada com tão pouco. O respirar dela parecia lhe dar mais motivos para permanecer ali, por mais que o fizesse em silêncio.
— Eu não aguento mais, Kalos. — disse, engasgado.
— O que?
— Eu… Eu me sinto estagnado, sabe?
Ela passou a mão em suas costas, com uma expressão afetada.
—. Parece que eu tô preso… Briguei com meus amigos, briguei com minha família... Eu não… Eu preciso de espaço, eu preciso respirar, e não consigo. Tem tanta coisa guardada e eu não consigo soltar.
— Por que não vem comigo? — perguntou ela, tentando levantá-lo. — Conheço um lugar ótimo pra tomarmos café!
Ele não aceitou ser puxado.
— Kalos, tudo isso é ótimo… Mas mesmo quando você tenta me ajudar a esquecer, o problema continua.
Kalos baixou o olhar. Agachou até ficar em sua altura e limpou suas lágrimas com os polegares. Ela não parecia saber muito mais o que fazer, mas tinha ternura em seus olhos.
— Haos, eu não posso resolver seus problemas. — falou, tímida. — Mas eu posso estar com você, independentemente deles.
— E o que eu faço?
O silêncio preencheu a pausa.
— Nada se transforma do dia para a noite. — ela disse. — Mas você pode amenizar a dor escrevendo.
Ele balançou a cabeça.
— Escrever igual sempre fez. — incentivou.
— Como isso pode resolver qualquer coisa?
— A dor existe, mas você é livre para fazer o que quiser dela. — falou a moça, colocando um caderno e uma caneta no chão, desgastados pelo uso.
Não foi do dia para a noite, mas aos poucos ele conseguia ver quem Kalos lhe instigava: era uma moça de louros cabelos, dourados e brilhantes; olhos azuis como o céu mais aberto e belo que alguém poderia sonhar; um sorriso puro como o de uma criança pronta para desbravar o mundo. As palavras ganhavam vida, as correntes eram arrastadas pelo quarto, tentando se romper, em um grito no escuro que ninguém iria escutar, mas que ecoava pelas paredes;
“Eu sinto que estou morta há muito tempo, e quero renascer. Há muito tempo essa princesa cansou de esperar pelo príncipe, cansou de pensar no mal como o ruim, cansou de ver sem experimentar. Há uma linha tênue entre a vida e a morte, e a qualquer momento ela pode ceder. Eu não quero esperar por este rompimento, quero aproveitar as últimas oportunidades”
Sua jornada erguia-se aos poucos em três pilares: os sonhos de uma criança em ver o mundo pela primeira vez, em sentir as primeiras experiências e atribuir valor a cada sopro de sua vida; as hesitações de conhecer um universo que lhe parece às vezes hostil, onde se precisa esquecer do pré-concebido e retornar à pureza dos primeiros anos; e a tentativa de avançar mesmo com os pesos do passado, independentemente das dores e dos fantasmas, sem perder a chance de sorrir mais uma vez. Serena. Calem. Charlie.
Observava aquela liberdade da janela, admirava uma jornada que com certeza sonharia, na esperança de ter a sua. Suas asas ainda eram pequenas demais, mas ele conseguia ajudar alguém a voar independentemente delas. Ninguém lhe tiraria duas coisas: sua imaginação e seus sonhos.
E Kalos lhe dava a mão. Trilhavam cada rota, sentindo a textura de cada pedra desgastada amontoada no canto; as gotas das tempestades mais violentas que percorriam o corpo molhado; ouviam o farfalhar da grama conforme surgiam as criaturas mais fascinantes que o mundo jamais veria, que poderiam ser um conjunto de pixels programado para qualquer um que avistasse: mas em seus olhos o mundo ganhava a proporção que quisesse. Os mundanos tornavam-se heróis e, as criaturas, guerreiros. Os sonhos nunca eram bobos demais ou grandes demais, eles sempre tinham espaço. O impossível estava a algumas palavras mágicas de distância.
Os ecos do real, todavia, sempre estavam presentes em sua cabeça. Abria os olhos às vezes e se lembrava de onde estava. Os cantos mágicos das aves lendárias tornavam-se piados; os grilos, buzinas; as batalhas que sempre teriam o final que desejasse tornavam-se imprevisíveis e perigosas, e a espada em sua mão era apenas um simples lápis, pequeno demais para ser apontado de novo.
— Acho que precisaremos nos esforçar para o próximo capítulo. — disse, segurando com firmeza as mãos de sua amiga Kalos. — Vou precisar de mais algumas semanas.
Até as mãos tão firmes afrouxarem.
— Kalos, vou precisar ficar na escola até de noite. Estou estudando para o vestibular. Nos vemos no final de semana, ok? — falou, vendo os olhos compreensivos da moça esboçarem um tímido concordar.
…até quase soltarem.
— Kalos, eu não passei na prova. — ele socou a mesa. A moça segurava seu ombro, tentando abraçá-lo, mas ele não permitiu, enquanto as lágrimas correram pelos olhos. — Eu vou continuar preso. Eu não vou aguentar, eu não quero fazer tudo de novo.
Ela o abraçou, e assim ficaram. Tentou memorizar o rosto do garoto, pois já o via tão vagamente que quase esquecera sua feição. Os olhos brilhantes pareciam opacos e cansados. Os cabelos desgrenhavam-se em tufos sem brilho. Ele já tinha aquelas grossas olheiras? E desde quando lhe crescia barba? Aquelas espinhas com certeza não deveriam estar ali aos montes. A cada vez, mais distantes, ele parecia diferente. Ela jamais o confrontou: respeitou e falou que aguardaria. Acreditava que ele voltaria.
E ele voltou, tempos depois.
— Eu consegui, eu passei! — exclamou, parecendo reganhar as luzes em suas pupilas. — Será minha vez de começar uma jornada.
Ela festejou junto. Esperaram por esse momento havia muito. Mas as promessas pareciam se distorcer com facilidade conforme percebia seus dias mudando. O sorriso de Kalos não perdia seu brilho, mas começava a se desfazer. Cada vez que acreditava em algo, passava a se perguntar se de fato aquilo se tornaria realidade:
— Kalos, estou meio ocupado, mas é só agora no começo. — falou. — Assim que puder voltamos a planejar coisas, ok?
Ok. Ela concordou. E ele voltava. Os dois tinham resquícios de seus melhores dias pelos lugares mais belos daquele místico continente, mas ele sempre parecia meio distante. Interrompiam a viagem por causa de bobas mensagens no celular. Ele sumia da mesma maneira que voltava, em um piscar de olhos.
— Eu não sei se sou bom pra estar aqui na faculdade, Kalos. — falou, um dia, desabafando. — E se aqui não é meu lugar?
Ela já não sabia o que dizer. Kalos conhecia lindas paisagens, mas não era capaz de lidar com aquilo. Ela já havia dado todos os conselhos que conhecia. Não podia ensiná-lo a cozinhar, não sabia como mostrá-lo a pagar suas primeiras contas. Ela nunca precisou lidar com o perigo das ruas que não fossem as de Lumiose, e com certeza não podia consolá-lo de um relacionamento que partira seu coração.
O garoto precisou buscar aquelas respostas sozinhos, longe do mundo que tanto lhe ensinou. Por mais que questionasse às vezes seus novos passos, acreditou talvez fosse seu lugar aquele em que precisava estar. Ele olhava para Kalos e sabia que gostava daquilo que ela ensinou, ele amava contar histórias. Ela era testemunha.
— Kalos, as pessoas compartilharam uma história que eu postei. — ele falou, empolgado. — Olha quanta gente viu!
Ela sorriu e o parabenizou, mas seus olhos escondiam algo distante. Havia outra história? Por que ninguém nunca a reconheceu daquela forma? De repente suas belezas naturais e seus velhos contos de deuses da vida e da morte pareciam história de criança que todos já não queriam mais ouvir. Haos dizia assim dela em outros tempos, estampava com orgulho a página de seu blog aos amigos. Dizia com orgulho que participava de uma Aliança, que era um autor, um ficwriter...
...mas, nas últimas semanas, ela parecia uma amizade boba do passado, daquelas que não se confessa sem constrangimento.
— O que é esse arquivo “AeXY” no seu computador? — indagava alguém.
— Ah, é um arquivo velho. — respondia Vítor, fechando a tela. — Devo ter esquecido de deletar.
Até que os meses, e mesmo anos, se passaram.
— Kalos, eu fui chamado para uma pesquisa!
Passaram.
— Kalos, eu vou começar um estágio!
Passaram.
— Kalos, me convidaram para fazer um filme.
Passaram.
— Kalos, conversei com minha mãe, e agora voltamos a nos falar normalmente.
Passaram tanto que ela se tornou um arquivo nas profundezas do virtual. Um blog que os mais saudosistas visitavam de vez em quando, esperando por uma novidade, um sinal de vida do autor. A moça sabia que eles tinham momentos de vez em quando. Uma anotação, um parágrafo perdido. Um desenho esquecido na gaveta que nunca veria a luz do dia. Mas os outros não sabiam.
Pelo menos naquela noite, em meio a um turbilhão, ele voltou. A moça via seus perdidos olhos castanhos correndo pelos prédios iluminados de Lumiose, balançando a colher de metal pela xícara de café preto. O vapor subia até seu rosto, perdendo-se no alto ao se dissipar. Kalos tocou-lhe os dedos, resgatando-o para o presente.
— Eu estou feliz que você voltou. — murmurou a moça.
— Desculpa. — ele falou.
Fungou o nariz.
— Eu não queria ter colocado você para trás assim.
Era difícil decifrá-la na penumbra, parecia estar no único ponto escuro da cidade, onde os flashes já não mais alcançavam e os postes deixavam de iluminar. Ouvia sua respiração pesada, quase mais alta que todos os ruídos orquestrais da cidade.
— Você precisou abrir mão da nossa jornada — Kalos preencheu o silêncio. — para começar a sua própria. Eu estou orgulhosa.
Kalos se levantou e virou de costas. Não havia mais Lumiose, não havia prédios ou Prism Tower, não havia os rostos borrados no fundo e os gritos dos pneus atravessando o asfalto. Havia só um quarto escuro e um silêncio ensurdecedor; só um par de olhos cansados e pernas exaustas demais para dançar, rendendo-se aos joelhos.
Ela sentiu seu corpo ser abraçado. Braços trêmulos envolvendo seu corpo, com tanta força, como se quisesse entrelaçar-se com sua alma. E sentiu gotas escorrendo pelas costas, não de chuva, mas dos olhos fechados do rapaz tocando sua pele fina.
— Você foi minha jornada enquanto eu não podia ter uma. — falou ele, a voz falhando. — Desculpe se eu me esqueço disso às vezes.
Kalos se virou de frente a ele e retribuiu o abraço. Os olhos escorreram, inundaram. Como as duas crianças perdidas e reclusas, sonhando com uma aventura que não poderiam viver, procurando consolo em um mundo onde poderiam ser tão grandes quanto almejassem. Onde poderiam ser todos e, ao mesmo tempo, um rosto anônimo e desconhecido, escondido nas sombras de um arco-íris.
— Você sempre vai ser minha melhor jornada. — gaguejou Haos.
Kalos se afastou e encarou seus olhos fundos, onde os fantasmas translúcidos do passado já não mais habitavam, e abriam espaço para a sóbria opacidade de uma criança livre ao universo, mas que perdera aonde poderia se segurar nas quedas que lhe ameaçavam. Passou os dedos com um carinho que já não encontrava há muito tempo e desenhou um fino sorriso no canto da boca, tão verdadeiro que mais uma lágrima se formou. Ela passou o dedo indicador, limpando.
— Não precisa ter medo que eu desapareça. — sussurrou a moça. — Eu sempre vou estar aqui.
Ela deu-lhe um beijo na testa.
— Você cresceu tanto...
Algo em si gritava que ela estava para partir. Instintivamente o moço segurou-a com mais firmeza. O sorriso se abriu como o sol primaveril após uma noite de tempestades, trazendo a luz e o calor para as almas perdidas. Era como segurar água, que escorria pelos dedos e respingava pelo chão.
— Me desculpe. — reiterou ele, abrindo um choro como há muito não fazia. — Desculpe, desculpe, desculpe.
Ela tocou seu lábio com o indicador, pedindo silêncio. O garoto desabava. Com o passar dos anos aprendemos a controlar nossos instintos. O choro era um deles. Mas, uma vez que se abria aquela porta, era difícil fechar. Apenas a paciência e tranquilidade de Kalos conseguia acalentá-lo para que sua ofegante respiração se transformasse em uma inspiração de paz.
— Quando as coisas apertaram, eu estava aqui. — disse Kalos. — Se elas apertarem de novo, eu continuarei aqui. Senti que você precisava que eu te lembrasse disso.
Ele tentou segurá-la.
— Continue aquilo que nós começamos — pediu ela, com palavras que nunca esqueceria. — E conte as aventuras que seu coração pede.
Ele não se lembrava mais como era ser aquela criança. Os pensamentos outrora tão vivos tornavam-se memórias de alguém que não mais morava naquele universo. Por isso sempre estava diferente. Sempre que voltava ao seu mundo, olhava tudo com novos olhos. Poderia não ser mais os olhos de uma criança que queria sair em sua primeira aventura...
...mas talvez os olhos de um adulto que, em meio a tantos caminhos, sonhava com a inocência e singularidade dos primeiros passos; que queria se lembrar como era aquele trajeto que tanto fez que até esqueceu da mágica. Como amava aquela terra. Como não poderia? Era sua própria jornada que contava, eram seus sentimentos perdidos que ali estavam. Eram seus sonhos abertos a quem tivesse paciência e coragem de ler.
Sabia que o mundo mudava. Os dias se passaram com tanta velocidade que se arrependeu de um dia querer avançá-los. Como odiou, no passado, aqueles que diziam que era horrível crescer. Seu maior sonho era crescer, parecia um desperdício dizê-lo. Agora era ele que dizia aos céus que gostaria de ter demorado mais para crescer. O crescimento é como uma flor se abrindo: parece tão fluido que só percebemos que aconteceu tempos depois, olhando para o jardim e pensando “faz tempo que isso aconteceu? Passo aqui todo dia e esqueci de conferir”
Depois de um tempo, foi capaz de compreender e entender. Com as grandes responsabilidades veio sua liberdade, e com a liberdade lhe vieram as responsabilidades. Com a maturidade vieram as incertezas, e com as incertezas veio a maturidade. Não era um ponto, mas um conjunto de vírgulas, um amontoado de paradoxos e um eterno ciclo. Era essa a beleza do viver: não chegar a um ponto, mas aproveitar a sua jornada, cada uma das cidades, cada um dos amigos, cada uma das rotas.
Como em um jogo.
Ele se transformou, mas não abandonou seu eu antigo. Ele nunca saiu de lá. Apenas custava um pouco deixá-lo falar às vezes. As memórias não sumiram, elas estavam vivas e quentes em seu coração, em um lugar onde colecionava tudo com muito carinho. Era no passado que se encontrava não as respostas do futuro, mas sim a coragem para procurá-las. Suas histórias estavam todas lá, apenas aguardando para serem escritas. E ele queria contá-las. Kalos mostrou isso. Ele precisava contá-las.
Faltava apenas abrir os olhos, mas permitiu-se ficar assim mais um pouquinho. Poderia voltar para aquele mundo quando quisesse, não se esquecia. Poderia demorar. Mas ele sempre voltava, pois era na fantasia de suas histórias que eternizava a verdade de seu coração. Quase sentia sua pele brilhar, envolvida em um brilho prateado.
What? CYNDAQUIL is evolving!
E abriu os olhos, pois ainda tinha uma longa jornada pela frente.