CAPÍTULO 38
Família
“Uma
viagem em família: o presente perfeito para o Dia dos Pais! Aproveitem juntos por apenas dez parcelas, sem juros!”
Charlie
sentia uma dor no pescoço ao deixar a cabeça admirando os outdoors de Lumiose
por tanto tempo. Era um final de tarde. A Vernal Avenue
era especialmente frequentada durante os sábados e domingos. Geralmente não se tratava de uma área que o garoto visitava, mas secretamente gostava daquele ar.
Grupos
se sentavam nas mesas à rua dos restaurantes e cafés requintados;
algumas famílias aproveitavam as compras nas maiores lojas, muitas vezes
situadas naquele pedaço da cidade, saindo com sacolas ou apenas admirando as
vitrines. Alguns Furfrou de pelo grosso e saudável caminhavam pelas calçadas
como se estivessem em um desfile, saindo de um renomado estúdio de beleza feito
exclusivamente para a espécie.
Charlie
focou em um pequeno grupo. Um pai, uma mãe, e dois filhos. O mais velho e o
mais novo vez ou outra pareciam ter alguma discussão, mas logo um dos pais
tentava intervir. Por fim, entraram em um restaurante juntos, atrás de uma
mesa. Charlie perdeu-os de vista, voltando os olhos para a menina ao seu lado.
—
Tá ficando tarde. — falou. — Melhor a gente voltar.
Algumas
luzes já se acendiam. A Vernal
Avenue parecia um corredor cheio de
estrelas, chegando por fim à Prism Tower,
que por si só poderia ser um astro do universo. Mas quando o garoto se levantou
com a colega, foram na direção contrária, entrando por uma das vielas que a
maioria das pessoas talvez não tivesse notado que existia, sem qualquer
lâmpada.
—
Não fica triste.
Ele
se virou para Emma.
—
Não tô triste.
—
Tá sim.
Ele
parou de andar.
—
Eu já falei. — disse ela. — Você é minha família.
—
A Lumiose Gang é nossa família. — corrigiu ele.
—
Não. — retorquiu ela. — Você é minha família.
Charlie
abriu um sorriso. Ela correspondeu. Ficaram andando em silêncio, atravessando o
longo trajeto até sua casa. Aos poucos as conversas e risadas ficavam para
trás, as luzes brilhantes se apagavam, o frio batia na pele descoberta e ardia.
Entre os prédios altos era difícil ver as estrelas, parecia que se escondiam.
Charlie se virou para a garota e a segurou pelo braço. Tentou olhar em seus
olhos, procurando enxergar por entre as sombras.
—
Me promete uma coisa?
Emma
tentou ler sua expressão. Ele respirou fundo.
—
Um dia a gente vai ser tipo essas famílias. — ele disse.
A
menina coçou a cabeça.
—
Tipo mamãe e papai?
Charlie
corou.
—
Não, não tipo isso!! Família igual que a gente viu hoje. Não família igual…
Igual à que a gente tinha.
Emma
ficou séria. Estava escuro demais para conseguir dizer ao certo, mas parecia
que seus olhos marejaram. Dentro da gangue, não se discutia passado. Ninguém
gostava de falar, porque não havia o que falar. Havia das mais diversas
histórias, e a maioria delas não era agradável de se ouvir. Também se falava
pouco de futuro. Geralmente era mais sobre o presente.
Mas,
ainda assim, todos carregavam as cicatrizes do passado consigo. Algumas histórias
assombravam. Charlie ainda ouvia seu pai andando pelo corredor quando dormia, e
às vezes sabia que era seu maior pesadelo. Tinha medo de que algum furto seu
fosse pego; tinha medo que a polícia o prendesse. Mas talvez o maior de todos
fosse que seus pais o encontrassem.
Emma
o abraçou. Naquele momento que percebeu que eles não se abraçavam muito. Na
realidade, ele não abraçava ninguém. Mas era bom. Sentia o coração dela batendo
assustado contra seu peito, sentia que por um instante, estava tudo bem. Talvez
fosse uma faísca do que aquelas pessoas que ele admirava pelas grandes avenidas
tinham; mas qualquer lampejo era melhor que o eterno vazio.
—
Promete pra mim que nunca vai me abandonar? — ela falou. Dessa vez, ele não
teve dúvida que ela chorava. A voz havia quebrado.
Ele
a soltou e encarou nos olhos. “Abandonar” era um conceito duro. Algumas pessoas
utilizavam o termo, mas em contextos hiperbólicos. Quando Charlie ouviu aquela
palavra saindo da boca de uma menina que realmente conheceu o sentido literal,
entendeu a importância daquela promessa. Ele levantou o dedo mindinho, como
qualquer outra criança. Ela fez o mesmo, selando o compromisso.
—
Eu prometo. — disse ele, por fim.
♠ ♣ ♠
O vento soprava frio, especialmente
àquela altura.
Se em outros dias pelo menos um
tímido sol brilhava nas ruas de Lumiose, o tempo parecia anunciar uma virada.
Nuvens densas e carregadas cobriam os céus, e uma brisa gelada vez ou outra balançava
as folhas das árvores da Hibernal Avenue.
O Le Wow era um restaurante de nome
dentro de Kalos. Seu estabelecimento era tão requerido que havia diversas
divisões; enquanto as mesas para clientes medianos estavam quase lotadas no
andar de baixo, a cobertura era reservada às personalidades mais notáveis da
região. Naquele dia em específico, havia apenas uma mesa ocupada, com alguns seguranças
defendendo a entrada – o que marcava uma ocasião de fato atípica.
Diantha respirou fundo. De lá
conseguia ver grande parte da cidade, os enormes prédios subindo em direção ao
céu; as ruas se misturando em ramificações por todas as direções, onde carros
incontáveis e insignificantes pessoas atravessavam; diversas histórias se
perdendo por entre as vias movimentadas de Lumiose em um dia qualquer, de uma
manhã qualquer. Ela tomou um gole do chá
quente. Seu amigo a encarava.
— Já faz tempo. Eu estava com
saudade. — disse ele.
Ela continuou olhando para a
paisagem. Ele apoiou o rosto na mão, com um sorriso no rosto.
— Você não responde ligações mais
de velhos amigos. — murmurou, insistente.
— Lysandre… — balbuciou ela.
Ele deu uma risada singela.
— Eu tento conversar com você há
anos. Finalmente resolveu me ouvir.
Ela devolveu o olhar. Ficaram
assim, mudos, por um momento. Ela deslizou o olhar para o segurança alguns
passos adiante, mas, se ele ouvia algo, não havia como saber, pois permanecia
como uma estátua. Lysandre mexia o café preto de sua xícara com uma pequena
colher, vendo o vapor se dissipar com velocidade no vento frio. Ele se
aconchegou em sua blusa cheia de ornamentos.
— Você vai perder, Diantha.
Os olhos dela cravaram nos dele,
mas sua expressão continuava a mesma. Lysandre tomou um gole de sua bebida. Os
anos trouxeram transformações, para os dois lados. O ruivo sempre tivera um
toque misterioso mas, em seu olhar instigante, ele parecia estar dois passos
adiante; era como se Diantha fosse incapaz de dizer qualquer coisa que o
surpreendesse; como se ele aguardasse você mover sua peça no tabuleiro para
declarar um xeque-mate na rodada seguinte.
— Finalmente alguém irá ocupar o
cargo de Campeã que não você. — prosseguiu ele.
E olhou para a imensidão da maior
metrópole de Kalos como quem avalia uma vitrine, respirando do ar da cidade com
a admiração de quem gostava daquele movimento.
— Mas isso deveria ser um motivo de
alegria. Você não queria esse cargo, para começo de conversa.
Diantha arqueou as sobrancelhas,
quebrando seu silêncio em seguida:
— Você me conhece o suficiente para
entender que as pressões sobre mim estão além de meus gostos.
Ele voltou a fitá-la e ficou por
curtos instantes congelado, logo depois desenhando um sorriso de onde escapou
uma risadinha.
— Gosto da delicadeza com que você
pensa que esse problema é de fato relevante.
As pernas de Diantha se remexiam
debaixo da mesa.
— Lysandre, há algumas gerações de
pessoas apontando as armas para mim e para essa Coroa neste momento. Não creio
que você entenda a gravidade da situação.
— Eu entendo. Você é quem não
entende.
E voltou a encarar a bela paisagem,
onde alguns raios se desenhavam bem distantes, fora dos limites da cidade.
— Muito em breve, essa Coroa será
tão insignificante quanto quem a vestir.
Desta vez Diantha prendeu a
respiração.
— O que quer dizer?
— Kalos enfrentará algo bem maior
que uma troca de Campeões.
— Lysandre…
Ele tocou a mão dela. Ela sentiu um
arrepio lhe corroer pelo corpo; menos uma empolgação, mais uma tensão.
— Você ainda é muito bela, Diantha.
Mas percebo que os estresses de tua função lhe drenaram um pouco da energia.
Ainda assim, a mais bela de Kalos.
Ela puxou a mão.
— Não confie nas capas de revista.
Ele abriu um sorriso.
— O que me diria se não precisasse
mais de cosméticos para permanecer sempre jovem?
— Por acaso você tem uma dose de
água da fonte da juventude? — ela retorquiu, tomando um gole do chá, que já
estava quase frio.
Trocaram uma pequena risada.
— Tenho pensado um pouco sobre
beleza… Beleza eterna
— Nada é eterno, meu querido amigo.
— disse. — Agradeço pelos cumprimentos. Mas os anos passaram, para nós dois.
Nós três.
— És uma atriz e modelo. — ele deu
de ombros. — Depende de sua beleza, de sua energia, de sua vitalidade. E se
isso nunca se perdesse?
Diantha soltou um suspiro.
— Lysandre, meu dia hoje será
cheio. — falou, balançando a cabeça. — Chegue ao ponto, de uma vez. Há alguns
anos que não tenho mais paciência para seus suspenses.
Ele deu uma risada. Pegou um
computador da bolsa que carregava, e o abriu com todo o tempo do mundo. Diantha
permaneceu com a mesma expressão, mas a cada instante sentia uma tensão
crescente. Quando ele lhe virou a tela, ela passou o olhar por seu rosto
imprevisível, e tomou alguns bons segundos para decifrar o que era aquilo. Uma
pedra? Um casulo. Um casulo de tamanho anormal.
Após cair por si, Diantha jogou as
costas para trás, vendo-o guardar seu computador como quem acabou de mostrar
sua mais nova aquisição pela internet. Aquilo poderia ser só uma piada de mal
gosto, poderia ser um entendimento errado. Mas ela sabia que poderia, muito
bem, ser verdade, apenas de olhar em sua expressão.
— Lysandre, ser imortal é… É uma
loucura. Uma estupidez. Não entende a gravidade de algo assim.
— Quem disse que eu quero ser
eterno? — ele abriu um sorriso quase de orelha a orelha. — Ninguém capturaria o
Ser do Caos para garantir sua eternidade. Seria, no mínimo, a maior estupidez
de Kalos.
Lysandre limpou a boca com um
guardanapo e o amassou com uma mão.
— Estou falando de algo muito maior
que nossa vida.
Diantha tomou o último gole de seu
chá.
— Essa conversa já terminou.
Ele se divertia.
— Minha oferta continua aberta para
você. Por isso vim aqui.
— Agradeço por sua gentileza…
— Não precisa agradecer. — disse
ele. — Só pense. Você seria uma peça fundamental para o Team Flare.
Diantha fez um sinal para o
segurança e colocou sua cadeira no lugar.
— Em pouco tempo seu império irá
ruir. Isso é fato. — ela congelou ao ouvir suas palavras. Ele sequer a
encarava. — Resta a você avaliar seus próximos passos depois disso.
Ela avançou, deixando-o sozinho.
Enquanto seu assistente lia a agenda do dia, Diantha não conseguia tirar a
imagem dos olhos de Lysandre encarando a imensidão de Lumiose. Talvez ela
devesse ter aproveitado a vista por mais tempo.
♠ ♣ ♠
— Merda. Merda, merda, merda,
merda.
Ashley andava de um lado para o
outro incessantemente. Mesmo compreendendo a situação, Calem não evitava ficar
incomodado.
— Fique calma, Ashley.
— Calma?! CALMA?! Como você espera
que eu fique calma?!
Ela colocou as mãos na cabeça.
— São anos de pesquisas e de
estudos… Jogados fora!
Ela se sentou em uma cadeira e
cobriu o rosto. Não iria chorar. Ela já chorara o suficiente no dia anterior,
quando chegou em casa, onde ninguém mais iria ver. Sentiu todas as dores de ver
cada um dos minutos que investiu naquele esforço sendo roubados por alguém que
ela não era sequer capaz de imaginar quem. E, por mais que tentasse revisitar todos
os seus passos, não conseguia visualizar uma realidade diferente daquela. Não
havia como ter impedido.
A polícia estivera mais cedo lá,
mais uma vez; infelizmente, pareciam distantes de encontrar qualquer resposta
satisfatória. Ashley e Calem estavam sozinhos no laboratório – ou no que sobrou
dele. Acima de tudo, o prejuízo seria enorme. Possivelmente ela conseguiria
reconstruir tudo em questão de poucas semanas, uma vez que seu grupo era grande.
Ainda assim, o principal motor que movimentou sua vida por anos havia
desaparecido, e ela sequer parecia ter mais motivos para continuar ali.
Calem não sabia o que fazer. Ele
não era uma pessoa boa de consolar, e Ashley não era uma pessoa boa de ser
consolada. Mas, acima de tudo, não havia como consertar. Não havia palavra de
incentivo que substituísse alguns anos de pesquisa roubados. Eles se viraram ao
ouvir a porta se abrindo, onde Sycamore deu alguns passos, logo preenchendo o
espaço com um toque de seu perfume e seu sotaque típico.
— Professor? — murmurou Calem.
Ele deu alguns passos, parando na
frente da ruiva.
— Sinto muito pelo que aconteceu, chéri.
Calem coçou a cabeça.
— Vocês se conhecem?
— De alguns simpósios. — respondeu
ele. — Apesar das áreas de atuação diferentes, alguns setores da ciência de
Kalos costumam se aproximar.
Ele ponderou por mais um momento.
— Sinto muito, senhorita.
Ela levantou os olhos para ele,
ajeitando os óculos e colocando uma mecha de cabelo vermelha atrás da orelha,
como se estivesse se recompondo. Acenou com a cabeça, concordando, e se
levantou.
— Posso lhe oferecer uma água? Um
café? — disse ela, se levantando.
Sycamore ia falar algo, mas se
interrompeu.
— Difícil que eu recuse um café. —
e abriu um sorriso. — Veja, vim aqui em respeito, mas também porque precisava
falar com você.
Ashley analisou sua expressão.
— Sei que é um momento delicado, e
certamente precisa de um tempo para se recompor por aqui. — falou o professor.
— Mas o que passou significa que, mais que nunca, precisamos unir forças.
— O que quer dizer? — inquiriu ela,
arqueando uma sobrancelha.
— As pesquisas que desenvolvem. São
as mesmas que meu laboratório está tentando fazer.
A garota estendeu os braços,
sinalizando a bagunça ao seu redor.
— Acho que agora não é momento de
simpatias.
O professor coçou o rosto, sorrindo
de canto.
— Está errada. Mais que nunca
precisamos unir forças.
Um assistente trouxe um copo de
café expresso que acabara de sair da máquina e entregou nas mãos da menina. Ela
ofereceu a Augustine, que sentiu o aroma amargo e logo tomou um gole, elogiando
e fazendo algum comentário sobre o tempo esfriando.
— São pesquisas importantes, jovem
Ashley. — ele mexeu com uma colherzinha. — E agora elas estão nas mãos de
alguém perigoso. Alguém realmente
perigoso.
— Aquela androide. — murmurou a
garota analisando a destruição deixada. — A tecnologia que ela possuía, eu
nunca vi nada parecido.
— Não foi o primeiro ataque. Quando
eu estava de passagem em Shalour, os arquivos da Tower of Mastery foram roubados pela mesma androide.
Serena havia dito o mesmo a Calem. Sycamore
tomou outro gole e caminhou pelo laboratório. Observou uma máquina que fora
atingida por algo claramente sobre-humano.
— Tenho um conhecido que está atrás
dela há um tempo. Ele a chama de “Essentia”.
Tomou o último gole do café.
— Seja lá quem quer que esteja por
trás disso, sabe tudo que vocês sabem. E tudo que eu sei.
Ashley cruzou os braços, mas ouvia
atentamente cada palavra.
— Ou seja, está em nossa frente.
Não podemos permitir que alguém mal intencionado esteja na frente dessa
corrida.
— Pelo seu discurso… Você tem algum
palpite de quem possa ser? — indagou ela.
Sycamore olhou pela janela, não foi
possível enxergar seus olhos. Admirou as ruas afora, com a cabeça decolando.
— Infelizmente, tenho. — respondeu,
por fim, jogando o copinho no lixo.
♠ ♣ ♠
Charlie não aguentava mais. As paredes do quarto estavam quase se fechando contra si, sua mente não se aquietava. Ele não podia despejar tudo aquilo nos amigos, talvez eles sequer quisessem ouvi-lo. Charlie já os colocara em perigo demais. Contudo, não suportaria por mais tempo os ruídos de sua própria cabeça; os chamados da cidade e de seu passado se tornavam altos demais.
Deixando Thanos descansando no quarto, saiu discretamente. Sem aviso, sem bilhete, sem nada. Atormentado, ele disparou em direção ao coração de alguns de seus traumas.
Deixando Thanos descansando no quarto, saiu discretamente. Sem aviso, sem bilhete, sem nada. Atormentado, ele disparou em direção ao coração de alguns de seus traumas.
♠ ♣ ♠
—
Eu não posso mais ficar aqui, Charlie.
Ele
analisou o rosto dela, mas permanecia sério. Com o passar dos quase incontáveis
meses juntos, ele compreendia o jeito de Emma. Sabia que o jeito que ela
desviou o olhar, tentando focar na paisagem, escondia algo. Olhava para o
grande monumento do Magenta
Plaza, onde alguns turistas tiravam
fotografia posando. Fazia um dia quente, abafado. Uma criança começou a chorar
porque seu sorvete caíra no chão.
—
Como assim, Emma?
Os
dedos dela tamborilavam impacientes, apoiados no banco.
—
Você precisa me prometer que não vai contar pra ninguém.
Ele
não conseguia manter a neutralidade na expressão.
—
Você não pode fugir…
—
Eu… Eu consegui um lugar. Não é nada demais, mas…
—
Onde?
—
Charlie… Eu não posso contar.
Charlie
ficou mudo. Ele sentiu que havia algo estranho com Emma nos últimos dias, mas
não esperava que a notícia fosse essa. A menina não conseguia encará-lo nos
olhos por mais que alguns segundos.
—
É com um moço que trabalha como detetive. Ele tem um escritório na Estival Avenue. Precisava de uma assistente.
O
menino sentiu uma dor, uma dor que nunca havia sentido. Ele havia esquecido de
como certos sentimentos podiam machucar tanto quanto um corte. As palavras
seguintes custaram a sair, mas certamente causaram uma dor ainda maior na
garota.
—
Mas você é minha família…
Queria
gritar, queria dizer o quão incrédulo estava. Mas no fundo, ele sabia que não
podia obrigá-la a ficar. Ele não queria viver aquela vida para sempre, e sem
dúvidas não esperava que Emma vivesse também. Porém, era como se acreditasse
que aquela parte efêmera da vida de fato fosse durar para sempre, por mais que
entendesse que um dia aquela época chegaria ao fim, de um jeito ou de outro.
A
parte mais difícil era a inconstância de tudo que vivia. Ele nunca sabia se ao
final do dia as coisas iriam terminar do mesmo jeito que começaram quando
amanheceu. Perdeu amigos das maneiras mais diferentes possíveis, perdeu coisas,
perdeu quase tudo… Mas agora sentia que perdia a única coisa que realmente o
mantivera com alguma esperança.
—
Eu… Eu posso te ver?
Emma
abriu um pequeno sorriso.
Ele
sabia o que precisava fazer. Quando perguntaram, Charlie disse que a polícia
havia a capturado. E permaneceu assim por algum tempo. Quando pôde, fez uma
visita ao suposto local de trabalho de Emma. Era um escritório retirado,
parecia um dos prédios velhos de Lumiose que o detetive nunca tivera o trabalho
de limpar. Mas ainda assim, havia algo de diferente.
Não
era só mofo ou papel velho. Isso ele conhecia o cheiro. Mas havia algo a mais.
Havia um cheiro de chocolate quente e de café sobre o ambiente. Havia um cheiro
de perfume, não das fragrâncias caras pelas quais Kalos era tão famosa – mas
aquele aroma que alguém às vezes alguém carrega que faz com que você se recorde
de uma memória. Acima de tudo, parecia aconchegante, as plantas verdes se
retorciam nos vasos procurando alguma fresta de luz.
Talvez,
só talvez, como uma casa.
Emma
estava em uma mesa, anotando em um caderno com uma mão enquanto tentava
equilibrar um telefone entre o ombro e a orelha. Após terminar a ligação e as
anotações, abriu um sorriso para Charlie. Mimi, seu Espurr, estava dormindo
encolhido em uma cadeira não muito longe. Parecia como se tudo estivesse em seu
lugar.
E
os anos passaram, mais rápido que ele esperava. Charlie ocasionalmente visitava, mas aos poucos começou a se
habituar à ausência de Emma. Os intervalos de tempo ficavam maiores semq que ele se desse conta, de maneira que sempre que a encontrasse algo era novo. Parecia que conforme os dias avançavam, ela se
parecia menos com seu passado, e mais com alguém que ele sonhava em ser. Ele
aos poucos começou a ir com menos frequência, não porque não sentia sua falta –
mas porque sentia, talvez, ciúmes. Ele sabia que tudo parecia em seu lugar porque de
fato estava – e ele não pertencia ali.
Emma
finalmente fora acolhida por alguém. E ele deveria estar feliz. Ele sabia que
precisava estar feliz. Porque ela estava feliz.
Mas
ele não estava completamente.
♠ ♣ ♠
Serena fazia carinho nos pelos do
pequeno Espurr, que ronronava.
Ela conhecia a espécie o
suficiente, e isso certamente fez com que a criatura logo se aproximasse com
facilidade dela. Mas era curioso comparar como sua pelugem estava embaraçada e
mesmo um pouco suja. Entre as tarefas, o Observador talvez não tivesse muito
tempo para todos os cuidados que a criatura merecia. Ela sabia que não
precisava estar ali, mas de alguma maneira sentia segurança com aquele sujeito.
Não que ele parecesse aconchegante – porém, algo nele a fazia sentir tranquila.
Afinal, ele procurava por sua mãe.
Um rádio meio velho comentava
algumas notícias do dia entre uma música e outra - pela decisão do Observador,
eram definitivamente sucessos, mas talvez de algumas décadas atrás. Ele revirou
alguns documentos, comentando as notícias.
— Que situação.
— O quê? — indagou Serena, saindo
de seu transe.
— Diantha. — murmurou ele, sem dar
muita atenção ao assunto. — Deve estar enfrentando uma imensa pressão.
Ela encarou suas exatas palavras.
— Faz algum tempo que ela não
enfrenta um desafio. E Sienna é uma das melhores da geração dela.
Serena assentiu com a cabeça. O
pequeno Espurr sentiu que ela parou de acariciá-lo.
— Mas pressão de quem?
— Da família dela. — respondeu o
detetive. — Diantha é de uma família bem tradicional de Kalos, que detém a
Coroa de Campeão. Ela está há anos aprisionada nesse cargo. — ele abriu e
fechou uma gaveta. — Espero que tome o melhor caminho para ela.
Serena sentiu um arrepio.
— Aprisionada? — suas palavras se
perderam no ar, em uma epifania.
O Espurr subitamente acordou. Duas
batidas rápidas ecoaram pela porta gasta de madeira, mas antes que pudessem
perguntar, alguém já entrou. Houve um susto coletivo quando quem atravessou a
porta era Charlie. O menino alternou a visão entre as duas figuras, parecendo
tentar juntar peças de um quebra-cabeças.
— O que está fazendo aqui? —
murmurou o Observador, fechando a expressão.
Serena o segurou no braço.
— Ele é meu amigo. — disse, dando
alguns passos em direção ao menino. — Charlie, como você me ach… — ela congelou
por alguns instantes, como se seu cérebro estivesse “reiniciando”. — Vocês se
conhecem?
Os dois continuaram se encarando,
como se Serena sequer estivesse no ambiente. Charlie correu os olhos por uma
mesa vazia e observou. Estava tão empoeirada que ninguém havia ido ali sequer
para limpar direito por um bom tempo. E, simultaneamente, era como se alguns
objetos estivessem intactos: um lápis ao lado de um caderno; um vaso com uma
flor que murchara e se desfizera; um porta-retratos em que se precisava limpar
a poeira com o dedo para ver quem estava na fotografia.
— Eu só… Só queria saber se ela
havia voltado. — murmurou Charlie.
O Observador mudou ligeiramente o
tom, parecendo levemente compassivo. Ainda assim, meneou a cabeça em negação,
vendo o garoto respirar fundo. Serena girava a cabeça, perdida.
— Quem, Charlie?
O pequeno Espurr que outrora estava
no colo de Serena saiu correndo na direção de Charlie. Ele se abaixou, e o
pegou no colo, afagando entre seus braços. A garota sentiu-se completamente em
outro mundo. Sabia que era uma criatura que não simpatizava com qualquer
pessoa. E Charlie lhe dirigia um olhar tão sincero, que ela há muito não via na
expressão do rapaz.
Serena caminhou pela sala até a
mesa vazia. Pegou o porta-retratos e limpou com o dedo a sujeira. Era o
Observador, um pouco mais jovem, junto de uma menina. Ela havia visto em outras
fotografias, e supôs que fosse uma filha dele. Ela tinha um olhar terno,
deveria ter em torno de treze anos quando a fotografia foi tirada, com longos
cabelos negros entre os dois lados do rosto e um suéter azul meio gasto. O
Espurr também era o mesmo, mas bem mais filhote.
Os dois pareciam contentes de uma
maneira que ela não imaginava agora aquele mesmo homem que estava na sala.
Serena não precisou de muito para imaginar que aquela mesa deveria ser dela mas
que, por algum motivo, ela deixou de ocupá-la havia um bom tempo. De repente, aquele
escritório parecia um museu, repleto de memórias perdidas e interrompidas, onde
os fantasmas não conseguiam escapar.
Ela dirigiu o olhar para o amigo. O
que era aquilo? Dessa vez não havia piada atravessada de Charlie, não havia uma
brincadeira sem graça para amenizar. Ele acariciava aquele Pokémon com pesar. Parecia que agora ela usava lentes onde podia ver o passado o real Charlie, o qual ele já
não conseguia se disfarçar.
Ela guardou o porta-retratos e deu
alguns passos em direção do menino. Havia semanas que as coisas estavam
esquisitas. Mas ela sempre teve esperanças nele, ela sempre confiou nele. Ela o
havia convidado para estar ali. Ele era quase como… Família.
— Por que você nunca contou dela,
Charlie?
O menino a encarou, e Serena sentiu
um aperto no peito. Dessa vez seus olhos verdes não pareciam esconder nada, não
havia camadas de escombros escondendo um passado enterrado, não havia um escudo
nebuloso onde as mentiras e verdades se misturavam. Era como se pela primeira
vez não houvesse mais nenhuma defesa, Charlie estivesse desarmado e subitamente
perdia todo o controle que, ao longo dos meses de sua jornada, se manteve
intacto. Uma pequena gota caiu nos pelos do Pokémon. Serena não acreditou.
Charlie estava chorando.
Ele a encarou, mas quando subiu o
rosto, mais lágrimas deslizaram, e sua voz soou falha:
— Você me lembra dela.
Quando sentiu as palavras saírem,
ele desandou. Tudo aquilo que guardou por tantos anos finalmente saía. Ele
engolira o choro por tantas vezes que já se esquecera como era. Chorar não
resolvia nada. Mas, naquele momento, era tudo que podia fazer. Chorou pelos
seus pais. Chorou por seu irmão. Chorou por Emma, sua única família de verdade.
Chorou pela dor que causou em Serena e Calem. Chorou porque, de volta às ruas
de seu passado, percebeu que ele ainda continuava perdido entre os becos.
— Charlie...
Serena o abraçou, e sentiu os dedos
dele tocando suas costas com medo, os soluços arranhando o silêncio mórbido. O
Observador ficou quieto, e deixou os dois sozinhos. As lágrimas frias escorriam
pelos ombros de Serena, e por mais que aquilo a deixasse sem chão, também
sentiu uma ligeira paz. Charlie era humano.
Ele tinha suas dores, e ela nunca o tinha visto vivê-las.
— Me desculpa, me desculpa.
Ele a largou e ficou por alguns
momentos ponderando. Olhou para a mesa uma última vez, e saiu do escritório.
Serena se preparou para correr atrás dele, mas o Observador a interceptou.
— Deixe ele, ele precisa de um
momento.
E ele precisava.
Charlie correu pelas ruas, onde já
escurecia. Estava mais perdido que nunca, pois sequer sabia para onde corria.
Para onde iria? Quanto mais andava, mais as memórias brotavam. Dentro do
quarto, sentia-se sufocado pelo passado, mas lá as figuras tomavam vida, os
olhares lhe acusavam, os ruídos se misturavam em uma sinfonia caótica que
antecedia o grande desastre. As luzes agora cegavam, eram brilhantes demais
para ele.
O garoto entrou em um dos becos e
sentiu-se desabar. As vozes perdidas ecoavam entre as paredes do submundo da
Cidade Luz, vozes tão antigas que ele havia esquecido que estavam lá; em meio
ao único lugar que talvez tenha chamado de casa, voltava a estar sem chão, e no
fundo era aquilo que tanto fugiu de ser. Ouviu passos se aproximando, mas
estava caído, incapaz de sair. E percebeu que nada havia mudado. Ele ainda era
um garotinho com medo do escuro, e dos monstros que poderiam caminhar à sua
procura. Encolheu-se, como se voltasse a ter sete anos, fugindo de seu pai. E,
a última imagem que teve antes de apagar, foi de estar circundado de garotos.
♠ ♣ ♠
Fazia
um tempo que Charlie não visitava aquele lugar. A cada vez estava diferente.
Contudo, naquela ocasião específica, as diferenças chamaram sua atenção. O
escritório de Emma era suficientemente velho, mas nunca pareceu tão abandonado
quanto naquela manhã chuvosa. O garoto bateu na porta, se recolhendo com o frio
da garoa que escorria em suas roupas. Teve de bater várias vezes, até
finalmente alguém recebê-lo.
O
Observador abriu. De imediato, lhe desferiu um olhar fuzilante; parecia tão
cansado, como alguém que não saia da cama havia dias. Charlie congelou, deu
alguns passos para dentro para sair da chuva. O homem nada disse, deixou-o
encarar a mesa outrora ocupada por Emma, mas ela não estava lá.
Na
realidade, ela não parecia ter estado ali havia algum tempo. Ainda havia uma
essência de sua presença, como se tivesse levantado em uma manhã e deixado tudo
daquele jeito, na esperança de arrumar mais tarde. Contudo, a expressão do
Observador, quando se sentou à sua mesa e apoiou o rosto nas mãos, entregava
quase tudo.
—
Cadê ela? — inquiriu.
O
detetive lançou um olhar tão melancólico quanto acusativo. Charlie encarou as
fotografias na mesa e deu alguns passos para trás, sentindo o desespero lhe
corroer por inteiro. Quanto tempo fazia que não entrava ali? Quanto tempo fazia
que não a via? Quando foi a última vez que se viram?
Sem
respostas, o garoto simplesmente saiu, deixando o detetive sozinho. Vagou como
um fantasma pelas ruas e becos de Lumiose, passou o dia a procurando, sem rumo.
E, por muito tempo, continuaria sua busca, tal como o detetive. Contudo, tal
como qualquer tentativa frustrada, chega um momento em que a esperança dá lugar
a um seco conformismo; uma desistência que nunca dá paz ao espírito, mas onde a
mente se aquieta e submerge na densa realidade da qual tentava fugir.
♠ ♣ ♠
Serena encarou a porta branca adornada com os elementos dourados.
Olhou para os lados, mas nenhum dos funcionários do Hotel Richissime estava naquele momento, deixando-a só no imenso e luxuoso corredor. Ela teve tempo para ensaiar o que fazer. Ninguém a havia preparado para aquele momento. Dar uma batidinha? Duas? Soltar um grito? Por fim, deu duas batidinhas tímidas, que sequer sabia se alguém ouviu. Percebeu que longos segundos se passaram antes que uma voz ecoasse por trás. Talvez estivesse sendo espiada pelo olho mágico.
Olhou para os lados, mas nenhum dos funcionários do Hotel Richissime estava naquele momento, deixando-a só no imenso e luxuoso corredor. Ela teve tempo para ensaiar o que fazer. Ninguém a havia preparado para aquele momento. Dar uma batidinha? Duas? Soltar um grito? Por fim, deu duas batidinhas tímidas, que sequer sabia se alguém ouviu. Percebeu que longos segundos se passaram antes que uma voz ecoasse por trás. Talvez estivesse sendo espiada pelo olho mágico.
— Quem é? — ouviu.
Quando a porta se abriu, Diantha
estava com uma roupa de dormir, mas nem por isso menos glamourosa. Ainda sem maquiagem e de cabelos presos, tinha um toque
angelical, em sua camisola perolada. Ainda assim, sua expressão estava fechada,
os olhos como diamantes furiosos com a interrupção. Uma mão, nervosa, no
telefone. Serena quase prendeu a respiração.
— Você está há anos aprisionada em
um cargo. — disse a garota. — Por pressão da família.
A menina praticamente invadiu o
quarto. Diantha soltou uma reclamação e começou a falar mais alto, sabendo que
seus seguranças estavam à postos. Mas a loura sequer se importou. Caminhou pelo
quarto do hotel, até chegar à janela, encarando os incontáveis pontinhos
iluminados pintando Lumiose.
— Achei que ninguém entenderia como
eu me sinto… Como é ser colocada nessa posição.
— Eu vou chamar a polícia. —
alertou Diantha.
— Mas você me entende perfeitamente…
— disse a garota, com os olhos marejados, finalmente a encarando. — Mãe.