Pingos finos caíam do céu cinza, em
uma quantidade tão reduzida que deixavam o chão molhado em um delicado
pontilhado. O moço ouvia os batuques das gotas ressonando em seu guarda-chuva
como uma melodia tranquilizante da natureza naquele dia frio de outono. Um
carro de porte intimidador estacionou alguns metros à frente, e bastaram alguns
segundos para que alguém uniformizado descesse e abrisse a última porta.
Sua respiração mudou
instintivamente quando viu os pés dela tocando o chão de pedra molhado.
O motorista a cobriu com um
guarda-chuva para que descesse do carro. Ela já seria suficientemente alta sem
os saltos, mas eles a deixavam ainda maior Os olhos como duas pérolas negras cravaram no
rapaz assim que desceu, mas seus grossos lábios desenharam um sorriso
aparentemente simpático. Os cabelos perfeitamente enrolados subiam acima dos
ombros, tocando a pele escura como a noite de uma maneira singela.
Ela seguiu uma sequência de passos
até ele, e o rapaz estendeu o guarda-chuva para que entrasse. Foram alguns
segundos de ponderamento enquanto ela fitava seus olhos azuis como o oceano da
parte costeira de Kalos.
— Siebold. — disse a moça.
— Sienna. — acompanhou ele.
Ela se despediu do motorista e foi
para debaixo do guarda-chuva do outro. Seus olhos não evitaram admirar a
fantástica construção que estavam prestes a adentrar. Ela se lembrava daquele
lugar perfeitamente. Sentiu um ar frio vindo de dentro, em conjunto aos ecos
perdidos que escapavam pelo imenso portão. Quantas memórias cabiam dentro
daquele castelo?
Quando a porta se fechou, um
silêncio súbito restou dentro do salão. A chuva e o vento de Kalos eram
inaudíveis por trás das paredes reforçadas. O lustre imenso que pendia do teto
não iluminava tanto quanto deveria, por mais rebusques que tivesse. Ela ainda
assim esfregou as palmas das mãos, tentando se afastar do frio costumeiro da
região. Seus olhos se encontraram com os do rapaz, que moveu um conjunto de
fios do cabelo louro para detrás da orelha. Sorriram levemente, soltando uma
risadinha que se perdeu pelos corredores próximos.
— Faz algum tempo. — murmurou ele,
indicando o caminho. — Por onde andou?
Sienna suspirou fundo.
— Por aí. — deixou escapar,
simplesmente.
Knoc.
Knoc. Knoc. Os
saltos batiam na pedra a cada passo. Siebold seguia o caminho, e uma tempestade
de pensamentos dançava em sua mente – tempestade essa mais forte que a garoa
fina do lado de fora. Contudo, quando fitava aqueles olhos escuros sensuais e
misteriosos, as palavras pareciam perdidas e tolas demais para serem colocadas
para fora. Chegaram juntos após alguns silenciosos momentos a uma salinha.
Sienna admirou aquele espaço. Pequenas
dimensões, com uma comprida mesa ao centro. Siebold pegou uma chaleira e
derramou um jato de chá quente em duas pequenas xícaras de porcelana. Ofereceu
uma à mulher, que agradeceu enquanto depositava os dedos sobre o vidro quente,
sentindo o vapor doce subir até suas narinas.
O moço puxou uma cadeira e
sentou-se, cruzando a perna direita sobre a esquerda. Tomou um gole e sentiu o
líquido quente afagá-lo em meio ao frio do lado de fora. Os chuviscos tocavam o
vitral da janela, por onde transpassava um fino feixe de luz. Ele depositou a
xícara no pires, respirando fundo.
— Não penso que veio até aqui só
para tomar um chá comigo. — ele murmurou.
Sienna revelou um sorriso.
— Eu gostaria. — disse, deslizando
o indicador pela xícara. — Mas não.
Eles trocaram olhares por alguns
segundos.
— Eu vim pelo meu desafio. — falou
ela, por fim.
O rapaz pareceu contar até dez
mentalmente. Os olhos escuros ainda o fitavam, aguardando uma reação.
— Seu desafio foi há um longo
tempo, Sienna. — ele tomou mais um gole. — Você se lembra do que disse naquela
época.
— Eu disse que não estava pronta.
— Bobagem. Mas sim. Sua
oportunidade já foi. Infelizmente.
— Não pela legislação de Kalos.
Ele colocou a xícara de novo na
mesa. Os olhos fixos em si eram desafiadores, provocativos. Ela sabia o tom que
a conversa tomava, e parecia se divertir ligeiramente com o jogo de palavras.
As pausas pareciam recheadas de pensamentos perdidos.
— Quando?
— Quando for possível.
Provavelmente em não muito tempo.
Ele uniu as mãos em uma pirâmide.
— O que espera que eu diga?
Sienna suspirou, fazendo pequenas
ondulações em seu chá.
— Eu, sinceramente, não sei. —
admitiu, séria. — Não vim pedir permissão. Vim comunicá-lo. Como uma amiga.
Siebold abaixou a cabeça em um
sorriso
— Uma amiga… — ponderou.
O moço balançou a cabeça negativamente.
— Ser campeão não é uma escolha que
você faz em um dia de iluminação. É um fardo. E o escolhido deve arcar com as
consequências sem fugir.
— Eu não fugi, Siebold. — ela deu
um golpe na mesa com a palma da mão. O movimento não foi tão brusco, mas as paredes
amplificaram o som de maneira que parecesse um estouro.
Sienna encarou o vapor quente da
bebida se dissipando e brincando no ar.
— Eu só… Eu só precisava de tempo.
O outro passou a xícara por entre
as mãos, segurando com firmeza.
— Teve seu tempo. — ele murmurou,
levantando o olhar. — Mas não pode esperar que o resto do mundo tenha congelado
esperando por você.
A moça tentou decifrar seu olhar,
mas ele parecia tentar escondê-lo, como uma criança. Desviava para o lado,
incomodado pela pressão. Mas ela não parava de encará-lo.
— É um pedido de desculpas que você
esperou por todo este tempo? — indagou ela.
Siebold tomou um longo gole.
— Achei que fosse… Mas não acredito
que desculpas curem tudo.
— …porque eu não iria me desculpar.
Ele a encarou. Sienna se levantou e
ficou de costas, pensativa. Encarou uma estante de livros. Seus dedos longos e
finos dançavam por entre as lombadas de cores e tamanhos diferentes.
— Eu precisava de tempo. Precisava
amadurecer. Tudo aquilo era muito pra mim. — falou, quase que em uma melodia. —
Hoje sei o caminho que quero e devo tomar. E estou aqui porque queria que você
soubesse antes de qualquer outro.
Ele se apoiou na mesa com os
braços. Ouviu com cuidado cada uma das palavras. Espinhos.
— Aprecio seu gesto. — falou, em um
tom sincero. — Apenas não esqueça que sou um obstáculo para sua nova decisão.
— Você sempre foi. — ela sorriu. —
Um atalho e um obstáculo.
Os saltos ecoaram conforme ela se
aproximava. A cada passo mais perto, mais parecia que a pressão do espaço se comprimia
e a sala ficava menor – como se as paredes se encolhessem. Ela lhe tocou no
ombro, ainda apoiado na mesa.
— Minha função é impedi-la com
todas as minhas forças. — murmurou ele.
— Não esperava nada menos. Não
esperei tanto tempo para pedir piedade. — ela falou, tocando suavemente os
dedos por suas costas. — Mas na próxima vez que pisar neste lugar, só sairei
com a coroa de Campeã.
✦♰✦
— Quero
saber quem, por obséquio, deixou a toalha molhada em cima da minha cama!!
Os brados
de Calem se perderam no campo aberto, mas com certeza de suficiente distância
era possível ouvi-los. Alguns Fletchling se assustaram, voando em bando para
longe. Charlie coçou a cabeça um pouco sem jeito.
— Ops.
Calem saiu
de dentro do casebre balançando os braços em nervosismo. Sua expressão de
poucos amigos se virava para os lados, procurando pelo transgressor. Ao avistar
o rosto culpado de Charlie, os olhos semicerraram, como um predador que acaba
de notar a presa.
— Ora,
Charles…
Ele jogou
a toalha no chão, soltando um rugido de desgosto. Charlie e Serena ficaram por
alguns momentos fitando o garoto. Não era raro Calem estar estressado –
especialmente nos últimos tempos – mas, naquela ocasião, ele parecia
particularmente incomodado em um nível diferente.
— Por que
você está tão estressado? — perguntou a menina se aproximando.
— Você
quer saber, Serena? Bem, porque faz um mês que estamos nos escondendo em
lugares péssimos, tipo esse sítio de um desconhecido…
— Cal, não
fale assim do senhor Barnett, ele está sendo um amor em nos deixar ficar aqui!
—
…morrendo de medo de sermos apanhados pela máfia do seu pai! — resmungou ele. —
Bem, desculpe se isso me estressa, mas é que É ESTRESSANTE MESMO.
— Cal, eu
sei fugirmos foi uma decisão… Difícil… — ela suspirou. — Mas a gente fez a
coisa certa.
— Para
quem, Serena?
— Para nós
mesmos.
— Todos os
dias a mesma discussão. — murmurou Charlie para si mesmo.
Calem
balançou a cabeça.
— Existiam
outras formas de resolver aquele problema. Que não incluíam explodir um salão e
cuspir na cara do seu pai.
— Você foi
muito corajoso fazendo tudo isso... — disse ela, tocando-lhe o ombro.
— Serena,
eu fico realizado que conseguimos impedir que o casamento acontecesse. — disse
o garoto, respirando fundo, retirando com leveza a mão da garota de seu ombro.
— Mas é muito difícil pra mim lidar com todas as consequências disso.
O garoto
saiu caminhando, e ela queria chamá-lo de volta, mas sabia que não deveria. Não
adiantaria. A mesma discussão já perdurava havia semanas. Uma decisão tomada
impulsivamente às vezes custava tempos em suas consequências. Ela não estava
totalmente satisfeita com os rumos que sua jornada tomou, mas sabia que era
melhor que a segunda opção – casada em Vaniville
ao lado de sua família. O rosto
de Stevan ainda lhe assombrava algumas noites, quando ela tinha pesadelos.
O pequeno Baa Mer Ranch era um espaço comandado
por Barnett, um senhor simpático que permitiu que os jovens ficassem por algum
tempo. Ele não fazia ideia do real motivo pelo qual estavam lá, mas eles sentiam
que era melhor assim. Saber demais poderia deixá-lo em problemas. Além disso, o
velho senhor evitava muitos meios de comunicação – se por um lado isso reduzia
a ansiedade em evitar as notícias, por outro pareciam enlouquecer sem saber de
nada.
Provavelmente
a polícia estaria em busca deles nos arredores. Por mais que escolhessem um
lugar retirado, sabiam que as coisas não eram as mesmas. A apreensão às vezes
sufocava. Os momentos se tornavam angustiantes. Dormir às vezes era uma tarefa
para Serena: ela sabia que poderia acordar com seu mundo se desfazendo diante
de seus olhos a qualquer momento.
Calem
sabia isso mais que ninguém. Se martirizava. Para o garoto, era como uma
ampulheta. Estavam apenas evitando um final certo. Stevan iria encontrá-los. Poderia levar horas ou poderia levar anos, mas
ele não desistiria. Não sem antes recuperar sua herdeira e se vingar do primo
que a afastou de sua sina.
A menina
se encarou em uma pequena poça. Às vezes ela ainda tomava um susto. Tinha o
tique de mexer no comprimento de seu cabelo, mas agora ele já não tinha o mesmo
tamanho. Ela o cortou. Primeiro porque queria dificultar que fosse reconhecida.
Contudo, principalmente, porque sentia que precisava fazer aquilo. Ela não era
mais a mesma. Não se sentia mais a mesma. Às vezes, quando fechava os olhos e
ouvia os doces sons da natureza do rancho, era como se fosse transportada para
os primeiros e inocentes dias de sua viagem…
…Mas
quando abria, sabia que eles foram um momento passado. Talvez aquela Serena
estivesse morta. Quantas mortes cabem dentro de uma vida?
— Seu
Skiddo está tão feliz brincando com os outros… — ela comentou.
Charlie
saiu de seu transe. Vários outros da mesma espécie brincavam com seu Pokémon.
O senhor Barnett era especialista em criar produtos derivados do leite de
Skiddo, então criava um considerável grupo. O de Charlie era um pouco agressivo
nas brincadeiras, de maneira que os outros ficassem um pouco intimidados em
acompanhá-lo.
— Dê um
tempo pra ele. — disse Charlie, sem encará-la. — Lidar com essa pressão
enlouquece.
Serena se
apoiou no cercado ao lado do amigo, fitando os Pokémon correndo pelo pátio.
— Desculpe
por arrastá-lo para tudo isso. — disse ela, como um devaneio.
— Eu? —
ele balançou a cabeça. — Ora, eu fujo já faz anos. Fugir da polícia, fugir de
um milionário, apenas detalhes.
Ela abriu
um falso sorriso, tentando comprar a brincadeira. O rapaz era o único que não
balançava com a situação. Mais que nunca ela compreendeu como Charlie era
importante para o grupo – quando os primos pareciam desmoronar, ele aparecia
com leveza e perspicácia. Ele deveria ser o a temer mais, pois tinha tudo a
perder; Stevan não devia nada a ele. Porém, se isso o assustava, ele não
demonstrou. Seus olhos verdes continuavam igualmente impassíveis e misteriosos
por todas as semanas, se adaptando com relativa facilidade à nova realidade.
— Charlie...
Ela virou
o olhar a ele.
— Quando
meu pai e eu conversamos pela primeira vez, desde que eu voltei pra casa… Ele
me mostrou uma carta. Uma carta que você entregou a ele.
Ele
abaixou um pouco a cabeça, mas ela continuou o fitando. Talvez esperasse por
algum sinal, alguma hesitação, alguma emoção. Mas, mais uma vez, ele nada
esboçou. Os olhos da garota pareciam implorar para que aquilo fosse mentira,
mas ambos sabiam que havia acontecido.
— Por quê?
— Eu
queria tentar contornar a situação. — ele murmurou baixinho. — Não queria que
ele a mandasse de volta.
— Você
poderia ter falado comigo, Charlie.
Desta vez
ela o tocou no rosto. Sentiu um leve arrepio na pele do garoto quando ele foi
obrigado a se virar para ela, com o leve toque dos dedos da menina, tão macios
que pareciam usar luvas. Agora ele parecia ter menos o controle da situação
— Meu pai
fez perguntas sobre você. E me machucou demais que eu não sabia respondê-las.
— Serena,
minha vida é um tanto… — ele respirou fundo. — Confusa. Eu não gosto de trazer
essas coisas à tona.
Ela
balançou a cabeça.
— Charlie,
olhe onde nós estamos! Eu não sou mais uma desconhecida te pedindo informações
sobre a próxima cidade. Meus riscos sãos os seus. E os seus também são nossos.
Eu só quero que você seja sincero comigo!
Desta vez
ela sentiu a hesitação em seu olhar. Parecia suplicar para que parasse, como se
ela pedisse por algo que ele nunca poderia entregar. Era difícil dizer não para
aqueles olhos azuis marejados – ele sabia que machucava.
Charlie
tocou sua mão na dela e a abaixou, colocando em seu peito. Ela sentia as
batidas descompassadas e incertas.
— Você
confia em mim?
A resposta
demorou a vir. Qual era a verdade e qual era a resposta certa? Que escolha ela
tinha àquela altura? Ela suspirou e acenou que sim com a cabeça, com tanta
leveza, como se não tivesse outra opção.
— Então,
por favor, acredite em mim, Serena. Eu lhe prometo que essas perguntas eu vou
responder no momento certo.
— Quando é
o momento certo, Charlie?
— Só confie
em mim. Eu vou responder.
✦♰✦
Suspiro.
O vidro
embaçava com a respiração da garota. Por trás da janela, avistava a campina
onde os Skiddos brincavam e corriam livremente. Àquele momento, alguns se
escondiam da tempestade que aparentava se formar ao longe. A caída da tarde
tornava o quarto onde a garota repousava relativamente escuro.
Em torno
de seus braços, tinha um ovo Pokémon. Não fazia muitas semanas que Serena o
recebera. Tiveram a sorte de esbarrar com Aldrick e Katheryn acidentalmente
quando os dois se dirigiam à próxima cidade. O garoto louro lhe entregou de
presente, quase que em uma tentativa de reanimar Serena. Os dois não evitaram
um espanto quando se depararam com seus amigos novamente. Estavam abatidos,
assustados. Não era mais o mesmo trio de sempre.
Ela afagou
o ovo em seu corpo. Era curiosa a sensação de pensar que por trás daquela
grossa casca havia um ser vivo em formação. Por mais que tivesse um grupo de
Pokémons consigo, nunca experimentou a sensação de ver uma criaturinha nascer
diante dos seus olhos. De fato Aldrick estava certo. A esperança em ver aquele
evento lhe dava energias boas para continuar a jornada.
As últimas semanas foram da mais
amarga agonia. Por mais que as coisas continuassem razoavelmente as mesmas, a
tensão que agora nos atingia era uma triste novidade. Eu não via meu pai desde
o dia do casamento, que felizmente nunca aconteceu. Contudo, no silêncio, eu
quase conseguia ouvir sua voz irada e sua mão socando a mesa do escritório. Aquele
olhar de repressão estava sempre grudado na minha cabeça.
Os meninos sempre tentaram me
proteger, mas chegou um momento em que isso parou de ser suficiente. Eles
sabiam que corriam tanto perigo quanto eu. Por mais que tivéssemos feito aquela
fuga em equipe, os dois pareciam distantes um do outro. Mais que o normal.
Calem estava preocupado e insatisfeito. Eu sei que ele não me culpava, mas de
certa maneira eu não conseguia afastar a ideia que eu sempre o arrastava de
volta para meu conflito com meu pai. Nossa jornada começou por causa disso. O
quase-final de nossa jornada foi por causa disso. E, agora, nossa fuga também
era pelo mesmo motivo.
Charlie parecia mais sério. Ele
sempre teve um lado descontraído, mesmo diante das situações mais adversas.
Mas, dessa vez, eu o flagrava quase tão assustado quanto nós. Ele mentia, fazia
uma piada, tentava me colocar para cima. Infelizmente eu já o conhecia o
suficiente para saber que o desespero também o perseguia, por trás dos sorrisos
tortos.
No fundo nós três sabíamos que
aquilo era uma ampulheta, cada grão de areia nos arrastando para mais perto de
meu pai. Ele com certeza assistia a tudo com gosto, contando os segundos para
nos ter de volta. Eu sabia que esse dia chegaria.
O mistério era em como me antecipar
para este evento.
✦♰✦
O passar
das semanas exigiu que Calem aprendesse algumas coisas novas.
Navegar em
um pequeno barco seria algo impensável alguns meses atrás. Mas agora o garoto
tinha muito tempo livre – e precisava se ocupar com algo que não o fizesse enlouquecer.
Aos poucos reduziu seu medo e passou a conhecer melhor algumas das ilhotas ao
redor da Rota 12. Não havia nada muito além de pedras e cavernas pequenas, mas eram interessantes. Elas pareciam estar conectadas a certo misticismo da
região.
O senhor Barnett
havia contado que, segundo lendas, uma das cavernas era habitada vez ou outra
por guardiões dos oceanos. Ele mesmo havia testemunhado o que parecia uma ave
em chamas outrora, mas nunca teve como registrar se não na memória. Isso tudo
intrigava o garoto. Para além dos assuntos que o consumiam com Serena e
Charlie, ele ainda tinha uma curiosidade guardada acerca do universo em que
viviam.
Calem
caminhou pela areia com suas botas. Aquela em especial era uma de suas pequenas
ilhas favoritas. Não que ele tivesse desbravado muito mais – o Azure Bay era um canal repleto de
habitações de terra espaçadas pelo mar – mas já conhecia duas ou três a poucos
metros de distância do rancho onde passaram os últimos tempos. O tempo estava
fechado – um céu cinza apático, que indicava que, em algum momento, talvez
distante, uma tempestade cairia.
O garoto adentrou
uma pequena caverna. Outrora reclamaria mais, mas o fato de ser bem pequena –
quase uma gruta – fazia com que não se incomodasse muito. Havia uma pequena
lagoa, que se comunicava ao fundo com o oceano. Ele apreciava como havia alguns
sinais nas paredes, como se grupos ancestrais tivessem deixado vestígios
naqueles ambientes pouco explorados.
Agachou
para fitar as águas, e logo semicerrou os olhos para enxergar com melhor
precisão. Parecia avistar algo brilhante bem no fundo, mas a água era turva
àquela penumbra, dificultando que tivesse certeza. Era como um pontinho verde
reluzente, que gradualmente se aproximava.
— O que é
isso?
A luz se
deslocou, indo em direção ao mar. O garoto correu para fora da caverna,
acompanhando o trajeto. Era possível avistá-la, mas a velocidade com que se
movia chamou sua atenção. Instintivamente, subiu no barco e ativou o motor,
indo em direção a ela. Seus pensamentos traziam dúvidas – seria apenas um
Pokémon predador tentando atrair uma presa? De qualquer maneira, ele não
pretendia ir muito mais longe. Logo anoiteceria, e com certeza não era uma boa
ideia ficar perdido no Azure Bay após
a fuga do sol.
O ponto de
luz desapareceu na imensidão do mar quando o garoto se aproximou de uma próxima
ilhota. Logo estacionou o barco na areia e correu para fora, rumo a uma nova gruta,
pensando se avistaria aquele curioso fenômeno como na outra vez. Poderia ser só
um Chinchou ou um Finneon, mas algo em sua intuição contrariava essa ideia.
Quando
olhou para baixo, não havia nenhuma conexão com o mar. Ele não disfarçou uma
expressão de desagrado por ter perdido aquele pequeno ponto de luz. Contudo, os
fundos da gruta davam em um buraco curioso que não chegava nas águas, mas
parecia seguir em terra. Por mais que tentasse ver, seus olhos não avistavam a
real profundidade daquele buraco.
Subitamente,
sentiu um arrepio em sua espinha instintivo que seus sentidos dispararam. Assemelhava-se
a um rugido, tão distante e abafado que não era possível afirmar o que era com
certeza – mas ele podia garantir que não se parecia com nenhum Pokémon que já
conhecesse. Um urro agonizante perdido na terra. O barulho surgia tão das
profundezas que era impossível dizer se de fato era alguma criatura que o
reproduzia, mas uma coisa Calem teve certeza: não deveria estar ali, e aquele
era o sinal de que precisava ir embora.