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Notas do Autor - Capítulo 33

ALERTA DE SPOILERS! Antes de ler as notas, leia o capítulo correspondente primeiro!
Após alguns meses e algumas pandemias (rindo de nervoso), seguimos nossa estadia em Coumarine! Como já cheguei a comentar, esse arco não é tão intenso, mas traz alguns acontecimentos notáveis. Eu imagino Coumarine como uma cidade muito agradável. 

Na busca por respostas, Serena sempre parece que sempre acaba com mais perguntas... Mas olha, alguém se lembra do garoto do capítulo 23? Foi uma aparição tão rápida que acho que ninguém mais deve se recordar. Mas, bem, quando a Serena curiosamente foi parar junto dos túmulos da Rota 7, já havia alguém lá, que vai embora alguns momentos depois. Esse menino era o Azria, um personagem que nos apresenta pouco por enquanto, mas que ainda vai ser fascinante em seu tempo. Alguém que traz interrogações em sua própria existência, em sua própria memória... Quanto pensamos que os mistérios vão se resolver...

Quanto ao Charlie e Calem... Alguém estava com saudade dos dois fazendo confusões? Spritzee é um Pokémon cotado para o time do Calem há muito, muito tempo - um dos primeiros, na verdade, se não me engano. Ela deveria ter sido capturada na época em que eles passavam por Camphrier, na rota em que encontramos esse Pokémon normalmente, mas achei que não era o momento. Felizmente achei uma brecha! É um dos meus Pokémons favoritos de Kalos, inclusive. Acho que essa metade do capítulo foi bem cara de fic de Pokémon - aquela fantasia louca que só aconteceria dentro desse universo. Às vezes juntamos temas tão humanos que esquecemos em que mundo estamos... E, depois dessa, o clima esquentou bastante. Curiosidade: a loja de incensos de fato é um lugar do jogo (um dos poucos lugares existentes em Coumarine).

Espero que tenham tido uma boa leitura, e se preparem, pois uma batalha de ginásio nos espera!

Aproveito esse espacinho para deixar um agradecimento a todos vocês, queridíssimos leitores, sempre de olho nas novidades por aqui, mesmo em tantas pausas... E também um abraço especial em todos os amigos da Aliança, pelo incentivo, pelos comentários e por continuarem com seus planos incríveis que sempre me incentivam a continuar a jornada por aqui também. Feliz em fazer parte dessa equipe <3

Capítulo 33


CAPÍTULO 33
Aromaterapia


Serena protegia a cabeça com sua capa. A chuva gelada escorria em sua pele, caindo insistentemente sobre o corpo. O barulho das gotas rebatendo no plástico protetor era alto. Ela parou na primeira oportunidade que teve de se proteger. Retirou os papéis que carregava debaixo da capa e soltou um suspiro de alívio ao ver que estavam protegidos. Encostou sobre a parede daquele estabelecimento fechado e ficou por alguns momentos olhando em tom admirado a natureza derramando suas águas sobre Coumarine.
Já chovera na maior parte da manhã, parecia que agora o clima finalmente amansaria. O céu estava em um cinza claro, escondendo o sol por detrás das nuvens. A ruazinha estava quase vazia, ela via algumas pessoas caminhando aceleradas tentando evitar de se molharem. De maneira geral a garota gostava de chuva, mas acabou sendo pega um pouco de surpresa pela tempestade. Tirou o capuz da capa e escorreu a água de seus fios curtos de cabelo.
De lá ainda conseguia ouvir um pouco do barulho da parte mais agitada de Coumarine, ainda que a cidade fosse bem tranquila, especialmente não muito frequentada àquela época do ano. Alguns motores de carro e poucas buzinas se perdiam na melodia do respingar contínuo no chão de pedra. A garota foi escorregando as costas na parede, terminando sentada no solo. Encarou os papéis em suas mãos.
“Stevan Windsor”
Ela abriu a pasta e folheou, mas nada além do que já havia visto. Pensou que alguma informação poderia ter passado batido, que faltava um olhar mais atento. Mas não. Nada além do mais básico possível. Teria sido tola de pensar que seu pai teria documentos importantes em um local de fácil acesso assim? Já sabia de onde ele era, seu nome, seu tipo sanguíneo. Além disso, nada que contribuísse com sua busca.
A garota levantou a cabeça e soltou uma respiração longa. Abaixou o olhar ligeiramente e se deparou com uma figura a não muitos metros de si, protegendo-se da chuva da mesma forma. Ele encarava longe, quase perdido em seus pensamentos. Tinha uma pele alva que contrastava fortemente com seus cabelos negros como a escuridão. Sua pose era curiosa, parecia retraído, como alguém que acabara de levar um susto e ainda tinha o coração acelerado.



Serena finalmente conseguiu pousar o olhar naquela figura, mas sabia que não era a primeira vez que o via. O aperto em seu peito não mentia.
— …de novo!
A garota se levantou, indo em direção a ele. Protegeu os papéis mais uma vez, e cobriu a cabeça com o capuz.
— Ei, você! — exclamou.
O menino de imediato lhe dirigiu um olhar assustado. Seus olhos eram de um cinza tão escuro que por pouco chegavam ao preto, como um céu noturno sem estrelas. Os cabelos pretos caíam-lhe bagunçados pela cabeça O rapaz era um tanto mais alto que ela, mas seu corpo magro se esgueirou quando a menina apontou-lhe o dedo.
— Nós já nos vimos antes! — disse ela. — Não vimos?
Ele ficou a encará-la, mas antes que respondesse ela continuou.
— Desculpe te abordar assim, mas eu tive uma sensação muito estranha quando te vi que há tempos eu não tinha. — falou. — Geralmente eu sou uma pessoa que segue a intuição e…
A voz da garota foi morrendo quando percebeu que ele apenas e observava com uma expressão dúbia e talvez até um pouco assustada. A garota colocou a mão na boca, sem jeito. Um trovão ecoou ao longe, e uma nova rajada de água caiu violenta dos céus. Só o barulho da chuva preenchia o constrangedor silêncio.
— Por Arceus… M-me desculpe, moço. Oh, céus, eu fui horrível. Me desculpe!
Ela se virou, corada. Colocou o capuz na cabeça porém antes que fizesse o caminho de volta, ouviu uma voz rouca e grave que fez com que seu corpo sentisse um arrepio até os fios de cabelo.
— Já nos vimos. — ele disse. — Eu lembro de você.
Ela vagarosamente se virou, encarando-lhe.
— Eu vi você ontem e não evitei segui-la. Na biblioteca. Me desculpe, não queria deixá-la com medo. — disse ele.
Serena deu um passo à frente. O garoto permanecia na mesma posição. Era engraçado a contraposição de seus olhos azuis tão faiscantes e vívidos encarando aquelas orbes escuras como buracos-negros.
— Perto de Geosenge. Nos túmulos. — disse ele. — Você estava lá, não estava?
Serena sentiu novamente um arrepio, pois dessa vez ela que fora pega de surpresa.
— E-eu não lembrava de tê-lo visto lá. — disse.
Os dois ficaram em silêncio. Um trovão ribombou bem longe, enquanto a chuva ainda atingia com forças o chão. O som das gotas caindo na pequena parte da capa de chuva fora do coberto estalava pelo ambiente. O garoto pareceu ficar um pouco sem jeito após seu próprio comentário.
— Eu sinto que começamos de um jeito errado… — disse Serena. — Será que podemos tomar um café?
Após alguns instantes de ponderação, o garoto apenas concordou com a cabeça. Àquele tempo, os cafés mais movimentados de Coumarine estavam lotados. O mais próximo que alcançaram tinha recolhido as mesas para evitar que se molhassem. A placa da porta indicava que estava aberto. Correram para alcançá-lo sem se molharem muito, espirrando a água das poças no caminho. Ao abrirem a porta, um sininho tocou.
Serena pendurou sua capa de chuva em um lugar apropriado. Sentiram uma brisa do ar-condicionado logo que pisaram dentro. O rapaz balançou o sobretudo que vestia e esfregou os pés no tapete, secando. Os dois se entreolharam e seguiram para a fila, sem trocar mais palavras. Serena pediu um mocha, bem espumado. Ele pegou um expresso puro.
Os dois sentaram-se na mesa. A garota arrumou uma mecha do cabelo atrás da orelha e tomou um gole generoso de sua bebida. O ar-condicionado resfriava suas roupas molhadas de chuva. Olhou para o lado, vendo as gotinhas caindo e escorrendo pela janela que dava para uma das ruas mais conhecidas de Coumarine.
— Meu nome é Claire. — mentiu ela, como nas muitas vezes ao longo das últimas semanas.
— Azria. — falou ele, simplesmente, encarando a própria xícara de café escuro.
— Eu não sabia que você estava em Geosenge. — falou ela.
— Você não tinha notado minha presença quando chegou. — respondeu, tocando a mesa. — Está tudo bem.
Serena apontou-lhe um olhar confuso.
— Como sabe que sou a mesma pessoa? — indagou ela.
— Acho que do mesmo jeito que você sabe que já me viu.
Serena não se lembrava de tê-lo visto em Geosenge, mas por algum motivo sua memória lhe dizia que algo naquele garoto era familiar. Sobretudo, era com certeza ele que estava na biblioteca de Coumarine no dia anterior. Por que sua mente lhe chamava a atenção a alguém que sequer conseguiu conhecer direito? Olhar para ele lhe trazia algo curioso, como rever alguém que você não vê a muito tempo e preferia esquecer. Mas ela não o conhecia, e ele parecia assombrado até mesmo com o ruído dos trovões muito distantes.
— Eu não sei. — respondeu ela. — Mas eu sinto.

Existem pessoas que passam por nossa vida que mal nos lembramos. Em compensação, algumas deixam alguma marca curiosa mesmo que não tenham desempenhado nenhum papel relevante para nós. Não sei como dizer por que eu o reconhecia, mas conseguia. Nas três vezes que o vi, meu peito foi tomado de um sentimento misto que não sei definir ao certo, - como quando você sente que está prestes a descobrir uma coisa muito ruim, e já não sabe se é melhor a dúvida ou a certeza. Eu não o diria isso, de maneira nenhuma, mas seria coincidência?
Suspirou.
— Desculpe, sei que é coisa boba.
— O que você faz aqui, Claire? — indagou ele, sério.
— Estou procurando algumas respostas… — murmurou a menina, perdida. — Quero descobrir mais sobre minha mãe, mas parece que quanto mais procuro, mais longe estou...
Ela colocou a pasta de documentos na mesa, nervosa. Não havia contado aquilo para ninguém.
— Acho que ela pode me ajudar, mas não consigo, de jeito nenhum, encontrar qualquer coisa sobre ela.
— Sei como se sente. — balbuciou o garoto.
Serena levantou o olhar. Azria encarava o vidro afora, tão distante que suas palavras pareciam vapor solto no ar, que se dissipava aos poucos até desaparecer. Mesmo presente no ambiente, era como se parte dele não estivesse ali, e sim procurando por coisas que Serena não entendia, e talvez sequer ele mesmo seria capaz de dizer.
— Eu também estou procurando respostas. — falou, preenchendo o silêncio entre os dois.
— Sobre sua família?
— Sobre mim. — respondeu. — Sobre eles também.
O garoto tomou um gole do café amargo.
— Desde que eu acordei naquele dia… Não me lembro de mais nada. — falou, com um pesar tão grande que a cada palavra parecia que alguém lhe apertava um machucado.
Ela quase prendeu a respiração.
— Desculpe. — disse ele. — Não queria assustá-la.
— Por que… — ela passou o dedo com suavidade pela beirada de sua xícara. — Por que você está me contando isso?
Ele desenhou um canto de sorriso irônico, tão frágil que logo se desfez.
— Eu não sei. Desculpe.
— Não precisa pedir desculpas, eu só…
— Quando eu disse que sabia que já a vi é porque eu também tenho esse pressentimento. — murmurou ele, inclinando-se em sua direção. — Você me traz coisas boas, e eu... E-eu não sei explicar o que, mas faz um bom tempo que não tenho um pingo de esperança igual agora.
A garota encolheu-se, um pouco confusa.
— Quando diz que quanto mais procura mais longe está… É assim que me sinto. Desculpe por tê-la deixado sem jeito, mas você parece uma frestinha de luz que há muito tempo não me aparecia. Eu não deveria ter sido tão esquisito. É melhor eu ir.
Serena tocou o próprio peito enquanto o garoto se levantava. Ele deu um tropeção desajeitado, claramente incomodado de ter falado demais. As pessoas ao redor o olharam com uma expressão negativa, vendo-o seguir o trajeto até a porta.
— Não, espere. — falou, colocando-se de pé.
— Boa sorte em sua busca, Serena. — falou o garoto, por fim, deixando a menina sozinha na mesa, só instantes depois ficando desconcertada ao assimilar como ele a chamou.
♠ ♣ ♠
Os dois rapazes caminhavam lado a lado pela rua de terra. A parte mais alta de Coumarine City tinha algumas áreas preservadas e naturais, próximas a onde Calem parara para ler no dia anterior. O garoto preferia nos últimos tempos evitar os tumultos – gente demais lhe atacava a ansiedade, pensava que poderia estar sendo observado por qualquer capanga de Stevan.
Só não estavam em silêncio pois sucedia uma conversa desconfortável e forçada. Discutiram sobre o tempo, como a chuva havia acabado de parar. Alguns lugares ainda tinham poças consideráveis, de maneira que Calem tivesse que desviar, temendo sujar seus tênis. Charlie abria um sorriso quando acontecia.
— Sei que têm andado com a cabeça meio cheia… — murmurou Charlie, com as palavras tão teatralizadas que parecia estar ensaiando aquele diálogo mentalmente havia tempos.
Calem continuou olhando para o chão.
— Charles, essa conversa… — disse ele, acenando a cabeça. — Não vamos tê-la.
— Eu quero tê-la. — retorquiu o outro, tocando-lhe o ombro.
— Não o culpo. Não preciso de desculpas. Sua intenção nunca foi ruim. — balbuciou Calem, firme. — Apenas o fato de eu ter concordado com sua abordagem que me aborrece.
— Bem, talvez você não queira, mas deixo minhas desculpas. — concluiu o outro balançando as mãos.
Seguiram pela caminhada em um silêncio desconfortável, cheio de espinhos e entrelinhas perdidos. Charlie encarava o céu, Calem encarava o chão. Entre os passos incertos pelo caminho encharcado, o menino deixou escapar:
— Como você consegue?
O outro baixou-lhe os olhos verdes.
— O quê?
— Viver escondido. — murmurou. — De mentiras.
Charlie ficou por um tempo sem resposta, preparando-se para dizer algo, mas se interrompeu quando inspirou com calma o ar. Olhou ao redor discretamente, chamando a atenção do outro.
— Está sentindo esse cheiro?
— Não, meu nariz está meio entupido. A poeira da casa atacou minha rinite. — resmungou o outro.
— É um cheiro doce e forte.
— É uma casa de incensos. — apontou Calem.
Uma fachada antiga se estendia a não muitos metros dos dois. Aquela área não era tão repleta de comércio, uma vez que era razoavelmente mais retirada da cidade. A iluminação era baixa, trazendo um ar místico para o espaço, e uma névoa suave se dissipava pelo ar. Charlie sentiu novamente o aroma atraente que o convidou a investigar a lojinha. Várias estátuas de Pokémon de madeira e pedras escuras decoravam as prateleiras, especialmente de algumas figuras que eram conhecidas pelo misticismo que carregavam – Xatu, Solrock, Lunatone, Meowth... Todos Pokémon com representações importantes para várias culturas de diferentes lugares.
Tecidos pendurados decorados à mão caíam pelas paredes, entrelaçados com todo o cuidado. Pedras místicas em colares também eram artigos frequentemente destacados à venda. Muitos acreditavam nos poderes provindos dos artigos minerais – e, depois de conhecer as Mega Evoluções, Calem também não duvidava desse poder.
— Olá, rapazes. Procuram algo específico? — uma voz rangida como uma porta velha se fechando surgiu detrás da loja.
Os rapazes se viraram ao balcão, notando uma senhora baixinha de cabelos brancos presos em um penteado exótico, envolto por alguns lenços coloridos. Usava uma roupa repleta de símbolos, assim como alguns eram desenhados com cuidado em sua pele. Esboçava um sorriso simplório, faltando alguns dentes, e os olhos quase sumiam quando o fazia.
Havia alguns piados e rufares de asas. Em um poleiro próximo à velha senhora estavam vários Pokémons gorduchos, de uma penugem rosa de tom forte e olhos avermelhados brilhantes como as pedras místicas colocadas à venda; brigavam por mais espaço um com o outro no poleiro, batendo as asas entre si.



— Não, só estamos dando uma olhada. — respondeu Charlie, simpático. — Esse cheiro chamou a atenção.
— Ah, sim. Nós vendemos aqui incensos, ervas aromáticas, e outros produtos naturais. — explicou ela.
Calem encarou uma prateleira repleta de pedras, interessado. Ele reconhecia aquelas de livros – não eram apenas pedras místicas, mas sim pedras evolucionárias. Por mais que seu poder fosse tentado traduzir desde os primórdios de seu surgimento, eram, de qualquer maneira, suficientemente raras devido ao seu potencial de influenciar certas espécies de Pokémon quando expostos a seus poderes. Algumas só eram encontradas em lojas próprias de batalha por altos preços.
— Quanto custam, senhora? — perguntou o menino.
— Depende da pedra, meu jovem. — disse ela, balançando a cabeça.
Ele estendeu a mão, levantando uma delas. Quando a luz dos candelabros batia em suas bordas, percebia-se que brilhava em tons de roxo; contudo, antes de chegarem ao seu interior, pareciam se perder, sendo absorvidos até o centro escuro como um buraco sem fim, tão negro quanto o céu noturno.
— Uma Dusk Stone. — ponderou ela. — A Pedra do Crepúsculo. Essa veio especialmente da região de Sinnoh, é raramente encontrada por aqui. — falou ela, coçando o queixo. — Mas posso tentar fazer um preço generoso para você…
Calem se aproximou, negociando com a senhora. Sem muito discutir, puxou algumas notas de dinheiro de sua mochila com simplicidade, deixando no balcão. Charlie ficou brincando com os pássaros no poleiro, que quase compravam a provocação, tentando bicar seu dedo. Quando concluíram, a senhora abriu um novo sorriso, e os dois deixaram a loja com uma despedida. Calem admirou a pedra por alguns momentos antes de guardá-la em um bolso interno da mochila.
— Por que resolveu comprar isso? — murmurou o garoto.
— Ainda vai ser útil. — ponderou o outro.
Calem inspirou fundo o ar, fazendo um barulho com as narinas entupidas. Coçou, com uma careta, ameaçando um espirro.
— Aquele cheiro fica impregnado. Vou precisar de outro banho para voltar ao normal. — reclamou. — Até meu nariz entupido detectou esses cheiros.
Charlie inspirou também, olhando para trás. Ouviu um rufar de penas pousando ao redor e percebeu a mesma espécie da loja da velha senhora, encarando os dois com seus vívidos olhos vermelhos.
— Não é o pássaro que a mulher criava lá dentro? — indagou Charlie.
— Ah, que ótimo. — reclamou o outro, batendo as mãos nas pernas. — Agora esse bicho vai andar atrás da gente. Já não bastasse você me seguindo, agora ele também vai.
Charlie levantou uma sobrancelha, o encarando com seriedade.
— Será que dá pra parar com isso? — retorquiu, amargo.
O amigo o olhou de volta com dúvida.
— Como é?
— Me alfinetar toda vez. — respondeu. — Eu ando meio cheio disso.
— Mas eu sempre fiz isso. — Calem deu de ombros, voltando a caminhar. — Por que resolveu implicar comigo agora?
— Porque chega uma hora que cansa, Calem. — ele abriu os braços, sem sequer sair do lugar. — Olha a que ponto chegamos.
Calem abriu um sorriso irônico, parando de andar e se voltando para o amigo.
— Preciso lembrar por que estamos “neste ponto”?
— Tá, tá. Agora vai me culpar. Como sempre. — Charlie disparou, com uma falsa risada. — Apontando o dedo pra mim, toda vez. Eu sempre causo tudo, eu sempre sou o problema. O “indesejado”.
— De onde vem isso? — Calem cruzou os braços.
— De você! Ou estou mentindo? Você não faz questão de deixar claro isso sempre?
Calem suspirou, descruzando os braços e voltando a caminhar.
— Charles, não sei o que deu em você, mas eu não vou comprar essa briga.
— É porque você tem medo de qualquer briga. — ouviu, baixinho. — Até comigo.
O garoto parou de andar. Virou-se vagarosamente rumo ao companheiro, com um olhar de poucos amigos. Charlie o fitava com uma expressão séria que ele não via havia muito tempo.
— O que quer dizer com isso?
— Você é covarde. — cuspiu Charlie. — E seu medo é que os outros descubram isso, né?
O garoto puxou de suas coisas uma esfera. Calem ainda ficou digerindo aquelas palavras disparadas de maneira tão crua que qualquer reação foi impossível. Charlie não parecia estar brincando, falando tudo de um jeito tão seco que ele sequer se recordava quando foi a última vez que o percebera assim. O garoto lhe apontou o dedo, jogando a mochila de lado e lançando a Pokébola para o alto.
— Vai, Litleo! — disse.
A felina se espreguiçou, esticando as esguias costas. Mostrou as garras afiadas em suas patas, e forçou os músculos do rosto em uma expressão fechada, brilhando seus olhos atentos em direção ao adversário. Os dentes à mostra revelavam que estava pronta para seguir seu treinador.
— O que pensa que está fazendo? — perguntou o garoto.
— Vai fugir? — provocou Charlie.
Aquelas palavras assemelhavam-se ao que ele ouvira de Damien outrora. Mas uma coisa era quando um estranho lhe dirigia aquelas coisas. Outra era quando um amigo que te conhece completamente dizia. O outro hesitou, mas colocou a mochila no chão e levantou uma de suas Pokébolas. Jogou, revelando Tyrunt, que mostrou de cara sua poderosa mandíbula capaz de destruir rochedos.
Take Down. — anunciou Charlie.
Ancient Power. — rebateu Calem.
Litleo investiu furiosa, atingindo Tyrunt. O dinossauro, apesar do golpe, não hesitou muito em continuar de pé. Possuía uma pele resistente como as rochas do passado, e tinha consideravelmente mais treino em batalhas que sua adversária. A criatura levantou um grupo de pedras do chão, disparando contra o Pokémon de fogo, que tomou um notável dano.
♠ ♣ ♠
Serena caminhava lentamente pelas ruas, retornando à pequena casa em que haviam conseguido estadia na cidade. Sua cabeça estava distante, perdida na turbulência das muitas informações que lhe foram dirigidas por Azria. Se achou que finalmente interagir com aquele garoto lhe auxiliaria a responder algo, estava mais enganada que nunca. Agora não apenas estava confusa como também incerta pelo próprio garoto, sem ter como ajudá-lo.
Ela teve sua atenção atraída quando ouviu vozes de seus amigos não muito distantes. Correu alguns passos e não escondeu sua surpresa ao vê-los de lados opostos, em uma batalha. Começou a desenhar um sorriso ao pensar que Charlie poderia estar ajudando Calem a treinar para sua batalha do dia seguinte no Ginásio da cidade, mas logo a expressão caiu quando percebeu a atmosfera estranha que pairava no ar.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou a menina, então coçando o nariz. — Alguém aqui passou perfume?
Charlie virou lentamente a cabeça a ela.
— Princesa, não se envolva.
— Meus melhores amigos estão brigando, eu vou me envolver sim. — retorquiu a garota, se aproximando da briga. — O que deu em vocês?
— Ando um pouco cansado de seu primo apontando o dedo sempre para mim. — Charlie falou, seco.
— Não foi você quem disse que devemos dar um tempo a ele? — perguntou a menina, agora mais próxima dele.
— Bem, acho que demos tempo até demais. — deu de ombros.
Serena fechou a cara – outro evento não muito frequente.
— P-pelo menos ele é sempre sincero com a gente. — disse em tom quebradiço.
O outro desfez a cara que gesticulava anteriormente, razoavelmente perdido.
— O que quer dizer?
— Das suas mentiras, Charlie. — falou, direta. — Ou das coisas que você nunca conta. Eu já disse que estou cansada disso.
— Princesa, você também? — inquiriu Charlie.
— Não é questão de “eu também”, Charlie.
— Gente, será que só eu estou em sã consciência aqui? — perguntou Calem, do outro lado.
A batalha havia cessado com a entrada de Serena. Ele sentiu um frio na espinha em vê-los discutindo. Por mais que tivesse seus (muitos) poréns com o contato entre os dois, vê-los brigando naquele tom com certeza não era algo que o garoto gostaria. A seriedade em suas vozes parecia tão profunda que estava desconfortável em ver aquela troca de palavras – mas agora era quase ignorado no ambiente.
O menino soltou um espirro, coçando seu nariz já meio avermelhado.
— Se essa droga de cheiro já está me incomodando imagina se não estivesse com o nariz entupido. — resmungou ele.
De repente, Calem puxou de novo o ar, ouvindo o som das narinas presas quase assoviando. O garoto teve um leve estalo enquanto observava Charlie e Serena dialogando.
— Com o nariz entupido… — murmurou para si mesmo.
Ele olhou para os lados, procurando por algo.
— Serena, me empreste sua Pokédex. — falou.
A menina não lhe deu ouvidos, mas desta vez ele se permitiu resgatar o objeto em sua bolsa sem que ela sequer lhe desse atenção. Por mais que tivessem se desfeito de outros itens tecnológicos, tinham para si que a Pokédex era um artigo que não lhes forneceria perigo – além de sua utilidade durante as pesquisas da menina. Ele remexeu o aparelho, sem muita habilidade, levando mais tempo que gostaria para encontrar o que procurava.
Uma voz robótica anunciou, enquanto projetava a imagem de um Pokémon rosa como aquele que outrora pousara nas proximidades.
Spritzee, o Pokémon perfume. — informou a Pokédex.  Ele emite uma essência que encanta aqueles que sentem seu aroma. A fragrância varia a partir da dieta de Spritzee
O garoto deu um tapa na própria perna, agora com certeza que solucionara o mistério.
— Foi você quem fez isso? — inquiriu, procurando pelo Pokémon. Em seguida, deslizou seu olhar pelas redondezas. — Nossas mochilas!
O garoto fez o caminho inverso ao que tinham percorrido, deixando seus amigos em uma acalorada discussão. Não demorou para localizar o Spritzee a alguns metros de distância, voando com certa dificuldade enquanto carregava as mochilas de Calem e Charlie. O garoto soltou um espirro, sendo percebido pela criatura. Quanto mais se aproximava, mais intensa se tornava aquela fragrância. Ele percebia seus sentidos levemente abalados com aquela inalação.
Alcançando o Pokémon, conseguiu puxar sua mochila. A criatura tentou disputar, mas acabou tendo a bolsa arrancada. Calem resgatou no meio de suas coisas uma esfera. Sem muito ponderar, arremessou o objeto contra o pássaro, vendo-o ser arrastado para dentro.
A mochila de Charlie caiu instantaneamente no chão. O garoto correu para pegá-la, enquanto observava a esfera se remexer no chão. Não muito depois, o movimento cessou, indicando uma captura. Ele refletiu por alguns momentos. Até a Pokébola ficou levemente cheirosa.
Nem formou um sorriso no rosto, pois logo virou para trás. Levou as duas mochilas consigo, caminhando lentamente. Conseguia ouvir os brados de Charlie e Serena, mas forçou o máximo que pôde para não absorver nenhuma das palavras. Em uma de suas Pokébolas, revelou Skrelp, comandando um Water Pulse que logo atingiu os amigos.
Os dois tomaram um susto, se desestabilizando e caindo no chão, encharcados. Agora, porém, que haviam se molhado e o Spritzee já não estava mais por perto, o cheiro aos poucos se dissipou. Ambos respiraram fundo, diminuindo o ritmo. Coraram ao se observar, retomando consciência.
— Charlie…
— Serena. Céus…
Os dois  ficaram acanhados em se olhar nos olhos, desviando para baixo. As palavras outrora disparadas com tanta facilidade agora pesavam no ar em uma atmosfera sufocante.
— Essas coisas todas… — murmurou a menina.
— Eu não… Eu não sei…
— Já está resolvido. — interveio Calem. — Era um golpe. Essa fragrância provavelmente deixou vocês irritados de propósito. — deu de ombros.
Os dois se levantaram em silêncio, mexendo nas roupas molhadas. Os olhares ainda estavam cabisbaixos, como se tivessem medo de levantá-los e fossem obrigados a se encarar após aqueles longos minutos de discussão. Calem balançou a cabeça.
— Por que estão assim?
— Calem… — balbuciou Charlie. — Me desculpe.
— Não precisa se desculpar.
— Foi horrível o que…
—Sugiro que, pelo bem da convivência, consideremos que foi apenas um episódio e esqueçamos. — disse ele, voltando a caminhar
— Princesa…
— Ele está certo, Charlie… — disse Serena tocando-lhe no ombro.
A menina penteou os cabelos com a mão, forçando um sorriso.
— Me desculpe.


    

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