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Capítulo 38


CAPÍTULO 38
Família
“Uma viagem em família: o presente perfeito para o Dia dos Pais! Aproveitem juntos por apenas dez parcelas, sem juros!”
Charlie sentia uma dor no pescoço ao deixar a cabeça admirando os outdoors de Lumiose por tanto tempo. Era um final de tarde. A Vernal Avenue era especialmente frequentada durante os sábados e domingos. Geralmente não se tratava de uma área que o garoto visitava, mas secretamente gostava daquele ar.
Grupos se sentavam nas mesas à rua dos restaurantes e cafés requintados; algumas famílias aproveitavam as compras nas maiores lojas, muitas vezes situadas naquele pedaço da cidade, saindo com sacolas ou apenas admirando as vitrines. Alguns Furfrou de pelo grosso e saudável caminhavam pelas calçadas como se estivessem em um desfile, saindo de um renomado estúdio de beleza feito exclusivamente para a espécie.
Charlie focou em um pequeno grupo. Um pai, uma mãe, e dois filhos. O mais velho e o mais novo vez ou outra pareciam ter alguma discussão, mas logo um dos pais tentava intervir. Por fim, entraram em um restaurante juntos, atrás de uma mesa. Charlie perdeu-os de vista, voltando os olhos para a menina ao seu lado.
— Tá ficando tarde. — falou. — Melhor a gente voltar.
Algumas luzes já se acendiam. A Vernal Avenue parecia um corredor cheio de estrelas, chegando por fim à Prism Tower, que por si só poderia ser um astro do universo. Mas quando o garoto se levantou com a colega, foram na direção contrária, entrando por uma das vielas que a maioria das pessoas talvez não tivesse notado que existia, sem qualquer lâmpada.
— Não fica triste.
Ele se virou para Emma.
— Não tô triste.
— Tá sim.
Ele parou de andar.
— Eu já falei. — disse ela. — Você é minha família.
— A Lumiose Gang é nossa família. — corrigiu ele.
— Não. — retorquiu ela. — Você é minha família.
Charlie abriu um sorriso. Ela correspondeu. Ficaram andando em silêncio, atravessando o longo trajeto até sua casa. Aos poucos as conversas e risadas ficavam para trás, as luzes brilhantes se apagavam, o frio batia na pele descoberta e ardia. Entre os prédios altos era difícil ver as estrelas, parecia que se escondiam. Charlie se virou para a garota e a segurou pelo braço. Tentou olhar em seus olhos, procurando enxergar por entre as sombras.
— Me promete uma coisa?
Emma tentou ler sua expressão. Ele respirou fundo.
— Um dia a gente vai ser tipo essas famílias. — ele disse.
A menina coçou a cabeça.
— Tipo mamãe e papai?
Charlie corou.
— Não, não tipo isso!! Família igual que a gente viu hoje. Não família igual… Igual à que a gente tinha.
Emma ficou séria. Estava escuro demais para conseguir dizer ao certo, mas parecia que seus olhos marejaram. Dentro da gangue, não se discutia passado. Ninguém gostava de falar, porque não havia o que falar. Havia das mais diversas histórias, e a maioria delas não era agradável de se ouvir. Também se falava pouco de futuro. Geralmente era mais sobre o presente.
Mas, ainda assim, todos carregavam as cicatrizes do passado consigo. Algumas histórias assombravam. Charlie ainda ouvia seu pai andando pelo corredor quando dormia, e às vezes sabia que era seu maior pesadelo. Tinha medo de que algum furto seu fosse pego; tinha medo que a polícia o prendesse. Mas talvez o maior de todos fosse que seus pais o encontrassem.
Emma o abraçou. Naquele momento que percebeu que eles não se abraçavam muito. Na realidade, ele não abraçava ninguém. Mas era bom. Sentia o coração dela batendo assustado contra seu peito, sentia que por um instante, estava tudo bem. Talvez fosse uma faísca do que aquelas pessoas que ele admirava pelas grandes avenidas tinham; mas qualquer lampejo era melhor que o eterno vazio.
— Promete pra mim que nunca vai me abandonar? — ela falou. Dessa vez, ele não teve dúvida que ela chorava. A voz havia quebrado.
Ele a soltou e encarou nos olhos. “Abandonar” era um conceito duro. Algumas pessoas utilizavam o termo, mas em contextos hiperbólicos. Quando Charlie ouviu aquela palavra saindo da boca de uma menina que realmente conheceu o sentido literal, entendeu a importância daquela promessa. Ele levantou o dedo mindinho, como qualquer outra criança. Ela fez o mesmo, selando o compromisso.
— Eu prometo. — disse ele, por fim.
♠ ♣ ♠
O vento soprava frio, especialmente àquela altura.
Se em outros dias pelo menos um tímido sol brilhava nas ruas de Lumiose, o tempo parecia anunciar uma virada. Nuvens densas e carregadas cobriam os céus, e uma brisa gelada vez ou outra balançava as folhas das árvores da Hibernal Avenue.
O Le Wow era um restaurante de nome dentro de Kalos. Seu estabelecimento era tão requerido que havia diversas divisões; enquanto as mesas para clientes medianos estavam quase lotadas no andar de baixo, a cobertura era reservada às personalidades mais notáveis da região. Naquele dia em específico, havia apenas uma mesa ocupada, com alguns seguranças defendendo a entrada – o que marcava uma ocasião de fato atípica.
Diantha respirou fundo. De lá conseguia ver grande parte da cidade, os enormes prédios subindo em direção ao céu; as ruas se misturando em ramificações por todas as direções, onde carros incontáveis e insignificantes pessoas atravessavam; diversas histórias se perdendo por entre as vias movimentadas de Lumiose em um dia qualquer, de uma manhã qualquer.  Ela tomou um gole do chá quente. Seu amigo a encarava.
— Já faz tempo. Eu estava com saudade. — disse ele.
Ela continuou olhando para a paisagem. Ele apoiou o rosto na mão, com um sorriso no rosto.
— Você não responde ligações mais de velhos amigos. — murmurou, insistente.
— Lysandre… — balbuciou ela.
Ele deu uma risada singela.
— Eu tento conversar com você há anos. Finalmente resolveu me ouvir.
Ela devolveu o olhar. Ficaram assim, mudos, por um momento. Ela deslizou o olhar para o segurança alguns passos adiante, mas, se ele ouvia algo, não havia como saber, pois permanecia como uma estátua. Lysandre mexia o café preto de sua xícara com uma pequena colher, vendo o vapor se dissipar com velocidade no vento frio. Ele se aconchegou em sua blusa cheia de ornamentos.
— Você vai perder, Diantha.
Os olhos dela cravaram nos dele, mas sua expressão continuava a mesma. Lysandre tomou um gole de sua bebida. Os anos trouxeram transformações, para os dois lados. O ruivo sempre tivera um toque misterioso mas, em seu olhar instigante, ele parecia estar dois passos adiante; era como se Diantha fosse incapaz de dizer qualquer coisa que o surpreendesse; como se ele aguardasse você mover sua peça no tabuleiro para declarar um xeque-mate na rodada seguinte.
— Finalmente alguém irá ocupar o cargo de Campeã que não você. — prosseguiu ele.
E olhou para a imensidão da maior metrópole de Kalos como quem avalia uma vitrine, respirando do ar da cidade com a admiração de quem gostava daquele movimento.
— Mas isso deveria ser um motivo de alegria. Você não queria esse cargo, para começo de conversa.
Diantha arqueou as sobrancelhas, quebrando seu silêncio em seguida:
— Você me conhece o suficiente para entender que as pressões sobre mim estão além de meus gostos.
Ele voltou a fitá-la e ficou por curtos instantes congelado, logo depois desenhando um sorriso de onde escapou uma risadinha.
— Gosto da delicadeza com que você pensa que esse problema é de fato relevante.
As pernas de Diantha se remexiam debaixo da mesa.
— Lysandre, há algumas gerações de pessoas apontando as armas para mim e para essa Coroa neste momento. Não creio que você entenda a gravidade da situação.
— Eu entendo. Você é quem não entende.
E voltou a encarar a bela paisagem, onde alguns raios se desenhavam bem distantes, fora dos limites da cidade.
— Muito em breve, essa Coroa será tão insignificante quanto quem a vestir.
Desta vez Diantha prendeu a respiração.
— O que quer dizer?
— Kalos enfrentará algo bem maior que uma troca de Campeões.
— Lysandre…
Ele tocou a mão dela. Ela sentiu um arrepio lhe corroer pelo corpo; menos uma empolgação, mais uma tensão.
— Você ainda é muito bela, Diantha. Mas percebo que os estresses de tua função lhe drenaram um pouco da energia. Ainda assim, a mais bela de Kalos.
Ela puxou a mão.
— Não confie nas capas de revista.
Ele abriu um sorriso.
— O que me diria se não precisasse mais de cosméticos para permanecer sempre jovem?
— Por acaso você tem uma dose de água da fonte da juventude? — ela retorquiu, tomando um gole do chá, que já estava quase frio.
Trocaram uma pequena risada.
— Tenho pensado um pouco sobre beleza… Beleza eterna
— Nada é eterno, meu querido amigo. — disse. — Agradeço pelos cumprimentos. Mas os anos passaram, para nós dois. Nós três.
— És uma atriz e modelo. — ele deu de ombros. — Depende de sua beleza, de sua energia, de sua vitalidade. E se isso nunca se perdesse?
Diantha soltou um suspiro.
— Lysandre, meu dia hoje será cheio. — falou, balançando a cabeça. — Chegue ao ponto, de uma vez. Há alguns anos que não tenho mais paciência para seus suspenses.
Ele deu uma risada. Pegou um computador da bolsa que carregava, e o abriu com todo o tempo do mundo. Diantha permaneceu com a mesma expressão, mas a cada instante sentia uma tensão crescente. Quando ele lhe virou a tela, ela passou o olhar por seu rosto imprevisível, e tomou alguns bons segundos para decifrar o que era aquilo. Uma pedra? Um casulo. Um casulo de tamanho anormal.
Após cair por si, Diantha jogou as costas para trás, vendo-o guardar seu computador como quem acabou de mostrar sua mais nova aquisição pela internet. Aquilo poderia ser só uma piada de mal gosto, poderia ser um entendimento errado. Mas ela sabia que poderia, muito bem, ser verdade, apenas de olhar em sua expressão.
— Lysandre, ser imortal é… É uma loucura. Uma estupidez. Não entende a gravidade de algo assim.
— Quem disse que eu quero ser eterno? — ele abriu um sorriso quase de orelha a orelha. — Ninguém capturaria o Ser do Caos para garantir sua eternidade. Seria, no mínimo, a maior estupidez de Kalos.
Lysandre limpou a boca com um guardanapo e o amassou com uma mão.
— Estou falando de algo muito maior que nossa vida.
Diantha tomou o último gole de seu chá.
— Essa conversa já terminou.
Ele se divertia.
— Minha oferta continua aberta para você. Por isso vim aqui.
— Agradeço por sua gentileza…
— Não precisa agradecer. — disse ele. — Só pense. Você seria uma peça fundamental para o Team Flare.
Diantha fez um sinal para o segurança e colocou sua cadeira no lugar.
— Em pouco tempo seu império irá ruir. Isso é fato. — ela congelou ao ouvir suas palavras. Ele sequer a encarava. — Resta a você avaliar seus próximos passos depois disso.
Ela avançou, deixando-o sozinho. Enquanto seu assistente lia a agenda do dia, Diantha não conseguia tirar a imagem dos olhos de Lysandre encarando a imensidão de Lumiose. Talvez ela devesse ter aproveitado a vista por mais tempo.
♠ ♣ ♠
— Merda. Merda, merda, merda, merda.
Ashley andava de um lado para o outro incessantemente. Mesmo compreendendo a situação, Calem não evitava ficar incomodado.
— Fique calma, Ashley.
— Calma?! CALMA?! Como você espera que eu fique calma?!
Ela colocou as mãos na cabeça.
— São anos de pesquisas e de estudos… Jogados fora!
Ela se sentou em uma cadeira e cobriu o rosto. Não iria chorar. Ela já chorara o suficiente no dia anterior, quando chegou em casa, onde ninguém mais iria ver. Sentiu todas as dores de ver cada um dos minutos que investiu naquele esforço sendo roubados por alguém que ela não era sequer capaz de imaginar quem. E, por mais que tentasse revisitar todos os seus passos, não conseguia visualizar uma realidade diferente daquela. Não havia como ter impedido.
A polícia estivera mais cedo lá, mais uma vez; infelizmente, pareciam distantes de encontrar qualquer resposta satisfatória. Ashley e Calem estavam sozinhos no laboratório – ou no que sobrou dele. Acima de tudo, o prejuízo seria enorme. Possivelmente ela conseguiria reconstruir tudo em questão de poucas semanas, uma vez que seu grupo era grande. Ainda assim, o principal motor que movimentou sua vida por anos havia desaparecido, e ela sequer parecia ter mais motivos para continuar ali.
Calem não sabia o que fazer. Ele não era uma pessoa boa de consolar, e Ashley não era uma pessoa boa de ser consolada. Mas, acima de tudo, não havia como consertar. Não havia palavra de incentivo que substituísse alguns anos de pesquisa roubados. Eles se viraram ao ouvir a porta se abrindo, onde Sycamore deu alguns passos, logo preenchendo o espaço com um toque de seu perfume e seu sotaque típico.
— Professor? — murmurou Calem.
Ele deu alguns passos, parando na frente da ruiva.
— Sinto muito pelo que aconteceu, chéri.
Calem coçou a cabeça.
— Vocês se conhecem?
— De alguns simpósios. — respondeu ele. — Apesar das áreas de atuação diferentes, alguns setores da ciência de Kalos costumam se aproximar.
Ele ponderou por mais um momento.
— Sinto muito, senhorita.
Ela levantou os olhos para ele, ajeitando os óculos e colocando uma mecha de cabelo vermelha atrás da orelha, como se estivesse se recompondo. Acenou com a cabeça, concordando, e se levantou.
— Posso lhe oferecer uma água? Um café? — disse ela, se levantando.
Sycamore ia falar algo, mas se interrompeu.
— Difícil que eu recuse um café. — e abriu um sorriso. — Veja, vim aqui em respeito, mas também porque precisava falar com você.
Ashley analisou sua expressão.
— Sei que é um momento delicado, e certamente precisa de um tempo para se recompor por aqui. — falou o professor. — Mas o que passou significa que, mais que nunca, precisamos unir forças.
— O que quer dizer? — inquiriu ela, arqueando uma sobrancelha.
— As pesquisas que desenvolvem. São as mesmas que meu laboratório está tentando fazer.
A garota estendeu os braços, sinalizando a bagunça ao seu redor.
— Acho que agora não é momento de simpatias.
O professor coçou o rosto, sorrindo de canto.
— Está errada. Mais que nunca precisamos unir forças.
Um assistente trouxe um copo de café expresso que acabara de sair da máquina e entregou nas mãos da menina. Ela ofereceu a Augustine, que sentiu o aroma amargo e logo tomou um gole, elogiando e fazendo algum comentário sobre o tempo esfriando.
— São pesquisas importantes, jovem Ashley. — ele mexeu com uma colherzinha. — E agora elas estão nas mãos de alguém perigoso. Alguém realmente perigoso.
— Aquela androide. — murmurou a garota analisando a destruição deixada. — A tecnologia que ela possuía, eu nunca vi nada parecido.
— Não foi o primeiro ataque. Quando eu estava de passagem em Shalour, os arquivos da Tower of Mastery foram roubados pela mesma androide.
Serena havia dito o mesmo a Calem. Sycamore tomou outro gole e caminhou pelo laboratório. Observou uma máquina que fora atingida por algo claramente sobre-humano.
— Tenho um conhecido que está atrás dela há um tempo. Ele a chama de “Essentia”.
Tomou o último gole do café.
— Seja lá quem quer que esteja por trás disso, sabe tudo que vocês sabem. E tudo que eu sei.
Ashley cruzou os braços, mas ouvia atentamente cada palavra.
— Ou seja, está em nossa frente. Não podemos permitir que alguém mal intencionado esteja na frente dessa corrida.
— Pelo seu discurso… Você tem algum palpite de quem possa ser? — indagou ela.
Sycamore olhou pela janela, não foi possível enxergar seus olhos. Admirou as ruas afora, com a cabeça decolando.
— Infelizmente, tenho. — respondeu, por fim, jogando o copinho no lixo.
♠ ♣ ♠
Charlie não aguentava mais. As paredes do quarto estavam quase se fechando contra si, sua mente não se aquietava. Ele não podia despejar tudo aquilo nos amigos, talvez eles sequer quisessem ouvi-lo. Charlie já os colocara em perigo demais. Contudo, não suportaria por mais tempo os ruídos de sua própria cabeça; os chamados da cidade e de seu passado se tornavam altos demais.

Deixando Thanos descansando no quarto, saiu discretamente. Sem aviso, sem bilhete, sem nada. Atormentado, ele disparou em direção ao coração de alguns de seus traumas.
♠ ♣ ♠
— Eu não posso mais ficar aqui, Charlie.
Ele analisou o rosto dela, mas permanecia sério. Com o passar dos quase incontáveis meses juntos, ele compreendia o jeito de Emma. Sabia que o jeito que ela desviou o olhar, tentando focar na paisagem, escondia algo. Olhava para o grande monumento do Magenta Plaza, onde alguns turistas tiravam fotografia posando. Fazia um dia quente, abafado. Uma criança começou a chorar porque seu sorvete caíra no chão.
— Como assim, Emma?
Os dedos dela tamborilavam impacientes, apoiados no banco.
— Você precisa me prometer que não vai contar pra ninguém.
Ele não conseguia manter a neutralidade na expressão.
— Você não pode fugir…
— Eu… Eu consegui um lugar. Não é nada demais, mas…
— Onde?
— Charlie… Eu não posso contar.
Charlie ficou mudo. Ele sentiu que havia algo estranho com Emma nos últimos dias, mas não esperava que a notícia fosse essa. A menina não conseguia encará-lo nos olhos por mais que alguns segundos.
— É com um moço que trabalha como detetive. Ele tem um escritório na Estival Avenue. Precisava de uma assistente.
O menino sentiu uma dor, uma dor que nunca havia sentido. Ele havia esquecido de como certos sentimentos podiam machucar tanto quanto um corte. As palavras seguintes custaram a sair, mas certamente causaram uma dor ainda maior na garota.
— Mas você é minha família…
Queria gritar, queria dizer o quão incrédulo estava. Mas no fundo, ele sabia que não podia obrigá-la a ficar. Ele não queria viver aquela vida para sempre, e sem dúvidas não esperava que Emma vivesse também. Porém, era como se acreditasse que aquela parte efêmera da vida de fato fosse durar para sempre, por mais que entendesse que um dia aquela época chegaria ao fim, de um jeito ou de outro.
A parte mais difícil era a inconstância de tudo que vivia. Ele nunca sabia se ao final do dia as coisas iriam terminar do mesmo jeito que começaram quando amanheceu. Perdeu amigos das maneiras mais diferentes possíveis, perdeu coisas, perdeu quase tudo… Mas agora sentia que perdia a única coisa que realmente o mantivera com alguma esperança.
— Eu… Eu posso te ver?
Emma abriu um pequeno sorriso.
Ele sabia o que precisava fazer. Quando perguntaram, Charlie disse que a polícia havia a capturado. E permaneceu assim por algum tempo. Quando pôde, fez uma visita ao ­­­­suposto local de trabalho de Emma. Era um escritório retirado, parecia um dos prédios velhos de Lumiose que o detetive nunca tivera o trabalho de limpar. Mas ainda assim, havia algo de diferente.
Não era só mofo ou papel velho. Isso ele conhecia o cheiro. Mas havia algo a mais. Havia um cheiro de chocolate quente e de café sobre o ambiente. Havia um cheiro de perfume, não das fragrâncias caras pelas quais Kalos era tão famosa – mas aquele aroma que alguém às vezes alguém carrega que faz com que você se recorde de uma memória. Acima de tudo, parecia aconchegante, as plantas verdes se retorciam nos vasos procurando alguma fresta de luz.
Talvez, só talvez, como uma casa.
Emma estava em uma mesa, anotando em um caderno com uma mão enquanto tentava equilibrar um telefone entre o ombro e a orelha. Após terminar a ligação e as anotações, abriu um sorriso para Charlie. Mimi, seu Espurr, estava dormindo encolhido em uma cadeira não muito longe. Parecia como se tudo estivesse em seu lugar.
E os anos passaram, mais rápido que ele esperava. Charlie ocasionalmente visitava, mas aos poucos começou a se habituar à ausência de Emma. Os intervalos de tempo ficavam maiores semq que ele se desse conta, de maneira que sempre que a encontrasse algo era novo. Parecia que conforme os dias avançavam, ela se parecia menos com seu passado, e mais com alguém que ele sonhava em ser. Ele aos poucos começou a ir com menos frequência, não porque não sentia sua falta – mas porque sentia, talvez, ciúmes. Ele sabia que tudo parecia em seu lugar porque de fato estava – e ele não pertencia ali.
Emma finalmente fora acolhida por alguém. E ele deveria estar feliz. Ele sabia que precisava estar feliz. Porque ela estava feliz.
Mas ele não estava completamente.

♠ ♣ ♠
Serena fazia carinho nos pelos do pequeno Espurr, que ronronava.
Ela conhecia a espécie o suficiente, e isso certamente fez com que a criatura logo se aproximasse com facilidade dela. Mas era curioso comparar como sua pelugem estava embaraçada e mesmo um pouco suja. Entre as tarefas, o Observador talvez não tivesse muito tempo para todos os cuidados que a criatura merecia. Ela sabia que não precisava estar ali, mas de alguma maneira sentia segurança com aquele sujeito. Não que ele parecesse aconchegante – porém, algo nele a fazia sentir tranquila. Afinal, ele procurava por sua mãe.
Um rádio meio velho comentava algumas notícias do dia entre uma música e outra - pela decisão do Observador, eram definitivamente sucessos, mas talvez de algumas décadas atrás. Ele revirou alguns documentos, comentando as notícias.
— Que situação.
— O quê? — indagou Serena, saindo de seu transe.
— Diantha. — murmurou ele, sem dar muita atenção ao assunto. — Deve estar enfrentando uma imensa pressão.
Ela encarou suas exatas palavras.
— Faz algum tempo que ela não enfrenta um desafio. E Sienna é uma das melhores da geração dela.
Serena assentiu com a cabeça. O pequeno Espurr sentiu que ela parou de acariciá-lo.
— Mas pressão de quem?
— Da família dela. — respondeu o detetive. — Diantha é de uma família bem tradicional de Kalos, que detém a Coroa de Campeão. Ela está há anos aprisionada nesse cargo. — ele abriu e fechou uma gaveta. — Espero que tome o melhor caminho para ela.
Serena sentiu um arrepio.
— Aprisionada? — suas palavras se perderam no ar, em uma epifania.
O Espurr subitamente acordou. Duas batidas rápidas ecoaram pela porta gasta de madeira, mas antes que pudessem perguntar, alguém já entrou. Houve um susto coletivo quando quem atravessou a porta era Charlie. O menino alternou a visão entre as duas figuras, parecendo tentar juntar peças de um quebra-cabeças.
— O que está fazendo aqui? — murmurou o Observador, fechando a expressão.
Serena o segurou no braço.
— Ele é meu amigo. — disse, dando alguns passos em direção ao menino. — Charlie, como você me ach… — ela congelou por alguns instantes, como se seu cérebro estivesse “reiniciando”. — Vocês se conhecem?
Os dois continuaram se encarando, como se Serena sequer estivesse no ambiente. Charlie correu os olhos por uma mesa vazia e observou. Estava tão empoeirada que ninguém havia ido ali sequer para limpar direito por um bom tempo. E, simultaneamente, era como se alguns objetos estivessem intactos: um lápis ao lado de um caderno; um vaso com uma flor que murchara e se desfizera; um porta-retratos em que se precisava limpar a poeira com o dedo para ver quem estava na fotografia.
— Eu só… Só queria saber se ela havia voltado. — murmurou Charlie.
O Observador mudou ligeiramente o tom, parecendo levemente compassivo. Ainda assim, meneou a cabeça em negação, vendo o garoto respirar fundo. Serena girava a cabeça, perdida.
— Quem, Charlie?
O pequeno Espurr que outrora estava no colo de Serena saiu correndo na direção de Charlie. Ele se abaixou, e o pegou no colo, afagando entre seus braços. A garota sentiu-se completamente em outro mundo. Sabia que era uma criatura que não simpatizava com qualquer pessoa. E Charlie lhe dirigia um olhar tão sincero, que ela há muito não via na expressão do rapaz.
— Oi, Mimi. — disse, afagando a criatura.
Serena caminhou pela sala até a mesa vazia. Pegou o porta-retratos e limpou com o dedo a sujeira. Era o Observador, um pouco mais jovem, junto de uma menina. Ela havia visto em outras fotografias, e supôs que fosse uma filha dele. Ela tinha um olhar terno, deveria ter em torno de treze anos quando a fotografia foi tirada, com longos cabelos negros entre os dois lados do rosto e um suéter azul meio gasto. O Espurr também era o mesmo,  mas bem mais filhote.
Os dois pareciam contentes de uma maneira que ela não imaginava agora aquele mesmo homem que estava na sala. Serena não precisou de muito para imaginar que aquela mesa deveria ser dela mas que, por algum motivo, ela deixou de ocupá-la havia um bom tempo. De repente, aquele escritório parecia um museu, repleto de memórias perdidas e interrompidas, onde os fantasmas não conseguiam escapar.
Ela dirigiu o olhar para o amigo. O que era aquilo? Dessa vez não havia piada atravessada de Charlie, não havia uma brincadeira sem graça para amenizar. Ele acariciava aquele Pokémon com pesar. Parecia que agora ela usava lentes onde podia ver o passado o real Charlie, o qual ele já não conseguia se disfarçar.
Ela guardou o porta-retratos e deu alguns passos em direção do menino. Havia semanas que as coisas estavam esquisitas. Mas ela sempre teve esperanças nele, ela sempre confiou nele. Ela o havia convidado para estar ali. Ele era quase como… Família.
— Por que você nunca contou dela, Charlie?
O menino a encarou, e Serena sentiu um aperto no peito. Dessa vez seus olhos verdes não pareciam esconder nada, não havia camadas de escombros escondendo um passado enterrado, não havia um escudo nebuloso onde as mentiras e verdades se misturavam. Era como se pela primeira vez não houvesse mais nenhuma defesa, Charlie estivesse desarmado e subitamente perdia todo o controle que, ao longo dos meses de sua jornada, se manteve intacto. Uma pequena gota caiu nos pelos do Pokémon. Serena não acreditou.
Charlie estava chorando.
Ele a encarou, mas quando subiu o rosto, mais lágrimas deslizaram, e sua voz soou falha:
— Você me lembra dela.
Quando sentiu as palavras saírem, ele desandou. Tudo aquilo que guardou por tantos anos finalmente saía. Ele engolira o choro por tantas vezes que já se esquecera como era. Chorar não resolvia nada. Mas, naquele momento, era tudo que podia fazer. Chorou pelos seus pais. Chorou por seu irmão. Chorou por Emma, sua única família de verdade. Chorou pela dor que causou em Serena e Calem. Chorou porque, de volta às ruas de seu passado, percebeu que ele ainda continuava perdido entre os becos.
— Charlie...
Serena o abraçou, e sentiu os dedos dele tocando suas costas com medo, os soluços arranhando o silêncio mórbido. O Observador ficou quieto, e deixou os dois sozinhos. As lágrimas frias escorriam pelos ombros de Serena, e por mais que aquilo a deixasse sem chão, também sentiu uma ligeira paz. Charlie era humano. Ele tinha suas dores, e ela nunca o tinha visto vivê-las.
— Me desculpa, me desculpa.
Ele a largou e ficou por alguns momentos ponderando. Olhou para a mesa uma última vez, e saiu do escritório. Serena se preparou para correr atrás dele, mas o Observador a interceptou.
— Deixe ele, ele precisa de um momento.
E ele precisava.
Charlie correu pelas ruas, onde já escurecia. Estava mais perdido que nunca, pois sequer sabia para onde corria. Para onde iria? Quanto mais andava, mais as memórias brotavam. Dentro do quarto, sentia-se sufocado pelo passado, mas lá as figuras tomavam vida, os olhares lhe acusavam, os ruídos se misturavam em uma sinfonia caótica que antecedia o grande desastre. As luzes agora cegavam, eram brilhantes demais para ele.
O garoto entrou em um dos becos e sentiu-se desabar. As vozes perdidas ecoavam entre as paredes do submundo da Cidade Luz, vozes tão antigas que ele havia esquecido que estavam lá; em meio ao único lugar que talvez tenha chamado de casa, voltava a estar sem chão, e no fundo era aquilo que tanto fugiu de ser. Ouviu passos se aproximando, mas estava caído, incapaz de sair. E percebeu que nada havia mudado. Ele ainda era um garotinho com medo do escuro, e dos monstros que poderiam caminhar à sua procura. Encolheu-se, como se voltasse a ter sete anos, fugindo de seu pai. E, a última imagem que teve antes de apagar, foi de estar circundado de garotos.
♠ ♣ ♠
Fazia um tempo que Charlie não visitava aquele lugar. A cada vez estava diferente. Contudo, naquela ocasião específica, as diferenças chamaram sua atenção. O escritório de Emma era suficientemente velho, mas nunca pareceu tão abandonado quanto naquela manhã chuvosa. O garoto bateu na porta, se recolhendo com o frio da garoa que escorria em suas roupas. Teve de bater várias vezes, até finalmente alguém recebê-lo.
O Observador abriu. De imediato, lhe desferiu um olhar fuzilante; parecia tão cansado, como alguém que não saia da cama havia dias. Charlie congelou, deu alguns passos para dentro para sair da chuva. O homem nada disse, deixou-o encarar a mesa outrora ocupada por Emma, mas ela não estava lá.
Na realidade, ela não parecia ter estado ali havia algum tempo. Ainda havia uma essência de sua presença, como se tivesse levantado em uma manhã e deixado tudo daquele jeito, na esperança de arrumar mais tarde. Contudo, a expressão do Observador, quando se sentou à sua mesa e apoiou o rosto nas mãos, entregava quase tudo.
— Cadê ela? — inquiriu.
O detetive lançou um olhar tão melancólico quanto acusativo. Charlie encarou as fotografias na mesa e deu alguns passos para trás, sentindo o desespero lhe corroer por inteiro. Quanto tempo fazia que não entrava ali? Quanto tempo fazia que não a via? Quando foi a última vez que se viram?
Sem respostas, o garoto simplesmente saiu, deixando o detetive sozinho. Vagou como um fantasma pelas ruas e becos de Lumiose, passou o dia a procurando, sem rumo. E, por muito tempo, continuaria sua busca, tal como o detetive. Contudo, tal como qualquer tentativa frustrada, chega um momento em que a esperança dá lugar a um seco conformismo; uma desistência que nunca dá paz ao espírito, mas onde a mente se aquieta e submerge na densa realidade da qual tentava fugir.
♠ ♣ ♠
Serena encarou a porta branca adornada com os elementos dourados.

Olhou para os lados, mas nenhum dos funcionários do Hotel Richissime estava naquele momento, deixando-a só no imenso e luxuoso corredor. Ela teve tempo para ensaiar o que fazer. Ninguém a havia preparado para aquele momento. Dar uma batidinha? Duas? Soltar um grito? Por fim, deu duas batidinhas tímidas, que sequer sabia se alguém ouviu. Percebeu que longos segundos se passaram antes que uma voz ecoasse por trás. Talvez estivesse sendo espiada pelo olho mágico.
— Quem é? — ouviu.
Quando a porta se abriu, Diantha estava com uma roupa de dormir, mas nem por isso menos glamourosa. Ainda sem maquiagem e de cabelos presos, tinha um toque angelical, em sua camisola perolada. Ainda assim, sua expressão estava fechada, os olhos como diamantes furiosos com a interrupção. Uma mão, nervosa, no telefone. Serena quase prendeu a respiração.
— Você está há anos aprisionada em um cargo. — disse a garota. — Por pressão da família.
A menina praticamente invadiu o quarto. Diantha soltou uma reclamação e começou a falar mais alto, sabendo que seus seguranças estavam à postos. Mas a loura sequer se importou. Caminhou pelo quarto do hotel, até chegar à janela, encarando os incontáveis pontinhos iluminados pintando Lumiose.
— Achei que ninguém entenderia como eu me sinto… Como é ser colocada nessa posição.
— Eu vou chamar a polícia. — alertou Diantha.
— Mas você me entende perfeitamente… — disse a garota, com os olhos marejados, finalmente a encarando. — Mãe.
    

Notas do Autor - Capítulo 38

ALERTA DE SPOILERS! Antes de ler as notas, leia o capítulo correspondente primeiro!
PEGA FOOOOGO CABARÉ!!

"Emma". Esse nome já esteve perdido algumas vezes pelos capítulos, assim como ela também já fez alguma aparição.em flashbacks. Mas desta vez, temos uma peça importante do passado do Charlie revelada. Para aqueles que jogaram os jogos com muita atenção, talvez esse arco esteja sendo uma experiência ainda mais intensa...

Cara, cara....... Família! Que palavra forte. Ainda mais aqui dentro do contexto de Kalos, que sabemos que trouxe algumas adversidades ao longo de nossos muitos capítulos. Gente, sério, eu to até sem palavras de trazer esse capítulo pra vocês. Faz tanto tempo que tenho planejado essas coisas que tão rolando nesse arco, ter colocado tudo no papel pela última vez e finalmente clicar em "postar" foi inacreditável. To super feliz mesmo, e muito satisfeito com o resultado. Algumas dessas cenas estão escritas há anos, esperando pra ver a luz do dia.

A cada capítulo chegamos mais ao ápice de alguns dos pontos mais importantes da história. Sinto que nos últimos capítulos tem sido uma cena intensa atrás de outra, não existe paz, tudo que está ali é importante demais... Eu queria ter feito uma estada mais gostosa agora em Lumiose, curtido um pouco os museus e os cafés... Mas dessa vez não ia dar, estava tudo muito tenso. Prometo que um dia faremos uns capítulos mais tranquilos nessa cidade, prometo!

Mas até lá............. FOGOO!

Notas do Autor - Capítulo 37



Chegamos aqui ao próximo passo do arco de Lumiose, onde alguns rostos novos e velhos começam a surgir. Acho que nem tenho muito o que acrescentar por aqui hoje, as coisas seguem se desenvolvendo da maneira que começaram. Uma explosão aqui e ali e algumas informações importantes distribuídas pelo capítulo. Fiquem de olho nos rostos que pairam por estes capítulos... Esse arco é bem fechado, ficaremos por um tempo focado nas mesmas personagens enquanto estivermos presos nessa cidade.

Ione Lao representando nossos protagonistas pelos próximos capítulos
Estou muito, muito ansioso pelo próximo. O capítulo 38 é possivelmente um dos meus favoritos da temporada. Ele se chama "Família", e acho que o peso dessa palavra já é suficiente pra fazer pensar o que vem por aí. Aguardo vocês semana que vem por essas terras <3

Capítulo 37


CAPÍTULO 37
Lembre Quem Você É

Além de ter imagem de qualidade péssima, o pequeno televisor não comportava mais que alguns canais desinteressantes. Ou notícias catastróficas, ou programas que mais irritavam Charlie que de fato cumpriam a missão de distraí-lo. Havia concordado de ficar lá, mas não esperava que os primos fossem abandoná-lo por completo enquanto resolviam suas pendências. Acima de tudo, ficava preocupado.
Nunca sabia se seus amigos estavam próximos de retornar ou não. Só respirava profundamente aliviado quando eles chegavam. Aquele seria um longo dia sem a companhia deles, e sem poder fazer muita coisa dentro daquele cubículo. Caminhou pelo quartinho e olhou no frigobar. Haviam deixado algo para que comesse, mas ele estava razoavelmente sem fome. Voltou para a cama e ficou a observar Thanos que dormia ao seu lado.
Abriu um sorriso tímido. Geralmente tinha uma cara fechada com qualquer um que aparecesse, mas dormindo poderia ser um Pokémon qualquer. Levou anos para que o Pancham conseguisse dormir assim, um sono tranquilo ao seu lado, sem despertar com o menor dos ruídos. Charlie o entendia. Também custaram anos para que conseguisse.
Tocou o pelo escuro do Pokémon, fazendo-lhe uma pequena carícia.
♠ ♣ ♠
— Praga!
Após o ruído de vidro se quebrando, um silêncio dominou os arredores. Charlie respirou fundo. Quando pareceu seguro e os passos se distanciavam, tentou espiar. Em um monte de lixo, parecia não haver nada que chamasse sua atenção, até um pequeno monte de pelos se mexer.
Charlie se aproximou, cauteloso. Os olhos grandes de criança pareciam assustados, era como se por alguns instantes tivesse sido transportado novamente para o pesadelo de sua casa, onde era seu pai quem lhe atormentava. Uma pequena criatura estava entre vários descartes da parte de trás daquele hotel. Ele não sabia exatamente que espécie era – nunca fora muito bom em reconhecer Pokémon – mas parecia um ursinho de pelúcia.
Talvez não os ursinhos de pelúcia que vendiam nas lojas de lembrança de Lumiose. A não ser que eles fossem vendidos encardidos, com os pelos emaranhados e pedaços de uma garrafa de vidro entre os cortes do corpo. Um dos olhos da criatura estava ferido, de maneira que ele não conseguisse abri-lo. Mesmo para o costumeiro frio de Kalos, tremia mais que deveria.
Charlie ficou perplexo a encarar aquela criatura, sem saber o que fazer entre os ganidos de sofrimento que eram emitidos. Ele tentou aproximar sua mão da criatura, mas ao perceber que não estava sozinho, o Pokémon tentou atacá-lo.
O garoto recuou, assustado, mas notou que a criatura sequer tinha forças para atingi-lo. Seu coração disparava. Olhou para os lados, mas nenhuma resposta mirabolante lhe ocorreu.
— Ei, calma… Eu não… — Charlie limpou uma lágrima. — Eu não quero te fazer mal.
Ele tentou aproximar as mãos, mas o Pokémon fez o que pôde para resistir, até por fim fechar os olhos, desmaiado. O garotinho sentiu um aperto no peito, sozinho naquele espaço. Não poderia deixá-lo ali, não poderia fingir que nada aconteceu. Não poderia, pois entendia mais do que gostaria as dores daquela criatura perdida. Por mais que não fosse um treinador, sabia que havia um Centro Pokémon não muito longe, onde talvez pudessem explicar como proceder.
Quando entrou pelas portas de vidro correndo, não precisou mais do que gritar desesperado para que alguns enfermeiros corressem para tentar resgatá-lo. Todavia, ele foi obrigado a ficar na sala de espera enquanto o Pancham era levado, desacordado, sem que o garoto tivesse qualquer ideia do que viria a seguir.
— O que aconteceu? — perguntou uma enfermeira, em tom quase acusativo.
— Eu não… Eu não sei.
— Não é teu Pokémon?
— Não…
E foi deixado só na sala de espera.
♠ ♣ ♠
Calem passou algumas páginas da revista e a jogou na pilha, junto das outras. A moça da recepção continuava com o olhar fixo no computador, quase ignorando sua presença. A sala de entrada era pequena, mas visualmente harmônica. Não era tão agradável quanto a do laboratório de Sycamore, mas também não precisava atrair jovens de dez anos do mesmo jeito que o outro. O garoto virou a cabeça e abriu um sorriso.
Uma moça ruiva avançou olhando para os lados, à procura de alguém. Tirou seu jaleco após entrar na recepção e ajustou os óculos no rosto. Calem se levantou da cadeira e acenou com a mão:
— Surpresa.
Os olhos de Ashley quase saltaram do rosto. Ela empurrou o garoto para mais longe, tampando sua boca com a mão. A recepcionista não desgrudou os olhos do computador.
— Você é louco?
Calem coçou a cabeça.
— Eu sinceramente esperava uma reação menos pior.
Ashley cruzou os braços.
— É mesmo? Bom, um procurado de Kalos cujo rosto está em quase todos os canais entra de repente no meu laboratório. Desculpe, não deu tempo de encomendar flores para acolher sua chegada.
Ele fechou o olhar.
— Você sabe que nós não somos perigo algum.
A menina respirou fundo e soltou o ar, como quem finalmente começava a raciocinar melhor.
— Desculpe. — murmurou, balançando a cabeça. — Como…?
— Longa história. — ele deu de ombros. — Cadê seu amigo treinador?
Ashley raciocinou por alguns segundos, até abrir um sorriso.
— Seguindo sua jornada. — respondeu. — Achou que eu ia largar tudo pra viver nas rotas de Kalos enfrentando ginásios?
Calem reclinou a cabeça.
— Milagres podem acontecer.
Ela sorriu, mas logo fechou a cara.
— Por que veio aqui? Resolveu sair por aí se mostrando pra caso alguém te encontre de uma vez? — indagou ela, sussurrando.
— Se eu ficasse no nosso quartinho ia enlouquecer. — balbuciou ele. — Estão supervisionando as fronteiras da cidade.
— Eu sei. Vai dar um trabalhinho sair.
— Vim aqui lhe dar um aviso.
Ashley tentou ler sua expressão.
— Sua pesquisa. — Calem alertou. — Acho que você não tem dimensão do quão perigosa ela é.
Ela deu uma risadinha.
— Eu tenho bastante dimensão.
— Eu estou falando sério.
Ashley colocou o jaleco e ajeitou os fios de cabelo ruivos espalhados.
— Calem, eu lhe confiei em segredo. Eu nem podia ter aberto a boca. Se você andou espalhando…
— Eu conversei com o professor Sycamore sobre, e as pesquisas da Tower of Mastery foram roubadas. — sussurrou ele. — Junto de todos os documentos. E eles estavam pesquisando sobre o mesmo assunto.
Ela parou por um momento.
— Eu vi nos jornais. Alguém invadiu a Torre.
— Exato. E o Team Flare está atrás disso também.
A menina fez uma expressão de nojo.
— O Team Flare é uma organização… Estranha.
— Ashley… Eles são perigosos. — o garoto endureceu o tom. — Tive um mínimo contato com eles recentemente, e quando vi que falavam sobre isso, a conversa ficou… Intensa.
— Bem, eu sei que é perigoso. — murmurou ela, se preparando para voltar.
Antes que concluísse seu raciocínio, uma explosão balançou o prédio. Pela primeira vez a recepcionista tirou os olhos da tela do computador. Ashley sentiu seu coração disparar e, sem pensar muito, entrou correndo por entre os corredores do laboratório. Calem a acompanhou, igualmente assustado. 
— Parece que meu timing foi um tanto quanto ruim. — murmurou Calem.
— Você tem alguma coisa a ver com isso? — retorquiu ela.
Quando entraram na sala, Ashley sentiu um aperto no peito. Não era um espaço imenso, mas todo coberto por equipamentos de alto valor. O piso e as paredes eram de um branco clínico, assim como as bancadas. Os armários tinham consigo objetos importantes para as pesquisas, enquanto uma série de computadores auxiliava com os comandos. Fiações, lousas, contas, experimentos. Era o principal laboratório de pesquisas do prédio.
Ao centro, uma criatura robótica como um experimento que resolveu se levantar e voltar contra os seus criadores. Tinha uma altura não muito diferente dos dois, mas o corpo era coberto por uma veste mecânica, junto de um capacete que lhe dava um aspecto quase alienígena. Pela expressão de todos, Calem presumiu que ela não deveria estar ali. Apesar do som da explosão e de um buraco na parede, ela não havia machucado ninguém. Talvez fosse uma figura suficientemente inteligente para compreender que destruir itens irresponsavelmente naquele espaço poderia significar um risco a todos em um raio de quilômetros.
— O que está havendo aqui?! — inquiriu Ashley.
A criatura avançou alguns passos, em direção a um computador. Conectou fios de seu traje na máquina, como se estivesse extraindo arquivos.
— EI! — gritou a ruiva.
Antes que pudesse fazer algo, a criatura levantou as mãos, disparando uma onda de energia tão forte que atirou Ashley e Calem para longe, derrubando uma mesinha.
— Alguém pede socorro! — berrou um dos pesquisadores.
♠ ♣ ♠
Sentado na cadeira da sala de espera, Charlie sentiu os olhares tortos. Lumiose recebia treinadores de diversas partes do mundo, e talvez estivesse ocorrendo alguma competição, pois ouvia até mesmo outros idiomas em conversas atravessadas. E lá estava ele, sem qualquer expectativa de batalha ou competição, aguardando uma criatura que nunca havia visto na vida tentar retornar com vida.
Ele nunca se esqueceu. Na televisão, passava algum desenho de super-herói. Ele se chamava Thanos, aparentemente, um personagem que voltara da morte para salvar seu planeta natal. Pela décima vez, as portas de vidro se abriram e ele ficou apreensivo em ouvir o anúncio. Algum dos médicos pareceu examinar a prancheta mais uma vez antes de arriscar:
— Pancham sem nome, de treinador sem cadastro? — mais soou como pergunta que exclamação.
Quando ninguém se moveu, Charlie percebeu que era sua vez. O médico o indicou o caminho e começou a falar, mas ele não ouviu. Apenas correu até aquela criatura o mais rápido que pôde. O Pokémon estava conectado a tantos aparelhos que poderia ter se tornado Steel-type naquele momento.
— Foi difícil fazê-lo parar assim. — murmurou o médico. — Ele é um Pokémon um tanto durão.
Charlie encarou os olhos tristes daquela criatura. Naquele momento o Pancham talvez estivesse tentando lutar contra todos, mas estava tão imobilizado que não conseguiria fazê-lo.
— Que bom que pôde trazê-lo aqui, garoto. — continuou o doutor.
— O que vai acontecer com ele?
O médico endureceu a voz.
— Ele vai precisar ficar em observação. As contusões e os cortes não foram muito graves, mas deixaram marcas bem… Desagradáveis. — disse, encarando os olhos fuzilantes do lutador. — Infelizmente é um pouco comum encontrar Pokémons abandonados vivendo em más condições…
— Como assim abandonado?
— Bem, ele é de uma espécie que não costuma habitar cidades assim, menos ainda Lumiose. E algumas marcas de treino indicam que já deve ter pertencido a alguém anteriormente. A recuperação é um pouco complicada, mas não é difícil acontecer aqui no Centro. — pontuou o médico. — Iremos enviá-lo quando se recuperar para uma instituição que cuide de Pokémon de rua. Foi sorte ele ter te encontrado.
O médico foi chamado para um atendimento, deixando Charlie sozinho com o Pokémon. O Pancham encarava o teto, enquanto apenas o ruído do maquinário ao seu redor cortava o silêncio entre os dois. O garoto parecia confuso naquele local, havia esquecido como era dividir o espaço com outras pessoas que não faziam parte da Lumiose Gang. Ali só havia jovens falando sobre criação de seus Pokémon de estimação, torneios e batalhas. Por um instante, ele teve um vislumbre de uma vida que ele nunca teria.
E quando voltou a encarar Pancham, se lembrou da sua vida real.
— Eles não entendem — murmurou. O Pokémon pareceu ter sua atenção atraída, mas ele sequer reparou. — o que você deve ter passado… Eu consigo imaginar. Eu…Eu sei como é.
Pancham virou sua face para ele.
— Se você quiser… Você pode vir comigo. Não é um caminho dos sonhos mas…Mas eu prometo que nunca vou te abandonar. Nunca.
Ele encarou a placa ao lado, escrita com uma caneta de lousa. “Pancham sem nome”. Esfregou a mão e por alguns momentos ficou a ponderar o quadrinho em branco, reescrevendo com caneta preta. “Thanos”.
♠ ♣ ♠
Serena olhou de novo para o cartão. O nome da rua conferia. O número também. Ela bateu na porta e aguardou por alguns momentos, mas ninguém a atendeu. Fez uma segunda tentativa. Na terceira, girou a maçaneta e abriu.
Um cheiro de lugar fechado adentrou suas narinas, de maneira que ela coçasse instantaneamente o nariz. Ligou a luz e se deparou com um escritório pequeno, mas já meio marcado pelo tempo, como se ninguém o usasse como qualquer coisa diferente de um depósito nos últimos meses. Grandes estantes com livros e arquivos estavam bagunçadas, reviradas e já não pareciam seguir qualquer ordem possível. As mesas estavam repletas de papelada, algumas cartas direto do correio caídas em qualquer canto, e as plantas restantes bem murchas. A luz do teto, já meio fraca, de vez em quando falhava.
Ela pegou a correspondência caída, examinando por alguns segundos até ser interrompida.
— É um prazer conhecê-la, Serena.
Serena deu um salto com a voz rouca que saiu de uma porta que ela sequer tinha visto quando entrou. De imediato iria fazer diversas perguntas, mas foi tranquilizada:
— Augustine me avisou que você viria.
Era um sujeito alto, deveria ter mais de quarenta anos. Os olhos acinzentados como um dia nublado se mostravam sérios e exaustos, marcados por olheiras escuras e rugas que pareciam ser ressaltadas àquela luz. Repousava as mãos nos bolsos de um grosso sobretudo acastanhado como madeira velha. Ele deu um passo, e ela sem querer recuou. Ele levantou as mãos, tentando acalmá-la.
— Não precisa se preocupar.
Ainda assim, Serena teve de se forçar a ficar tranquila. Não era sempre que alguém a chamava nos últimos tempos pelo seu nome real. Tampouco alguém que ela não conhecia. O homem caminhou tranquilo pela sala – juntou um monte de papéis em uma das mesas, como se isso fosse ajudar a deixar o cômodo mais organizado, e avançou a uma cadeira de rodinhas em uma outra mesa maior, em uma área reservada.
Estendeu a mão sobre uma cadeira e Serena se sentou, ouvindo um pequeno rangido. A garota notou uma mesa vazia e velha próxima à porta. O Observador se sentou à sua frente, soltando um suspiro ao se acomodar. Guardou umas canetas espalhadas em um porta-bugigangas caído sobre a superfície da mesa.
— O senhor não…
— Eu não trabalho para a polícia. — respondeu ele com a voz grave. — Não mais.
Ele tinha olhos cansados, de quem já viu mais coisas que gostaria. Serena não sabia dizer se ele só tinha tido uma noite ruim de sono, ou se de fato carregava consigo toda aquela energia melancólica. A menina deslizou os olhos pela mesa e parou em alguns porta-retratos meio antigos, empoeirados. Ela viu o moço bem mais jovem. Em uma das fotos marcava “Jubilife City”. Em outra, ele tinha na companhia um Pokémon que lembrava um sapo, um Croagunk, típico das terras de Sinnoh. Em um último, estava na companhia de uma garotinha.
— Minha hora com isso já passou. — murmurou o Observador. — Estou em outro momento.
Serena, para não ser deselegante, parou de olhar para as imagens. Respirou fundo, antes de entrar no assunto que lhe pesava.
— O professor disse sobre o por que vim aqui?
O Observador concordou com a cabeça. O silêncio perdurou na sala. Um silêncio real.
— E o que você acha disso?
Ele pigarreou e depois fez uma pirâmide com as mãos, apoiando o queixo.
— Eu não gosto de afirmar coisas, Serena. Stevan é um homem influente. Isso significa que não é difícil encontrar conteúdo que lhe diga respeito... Da mesma maneira que ele pode ter tido grande esforço para apagar.
Ela não piscou.
— Quanto você cobra?
— É um caso especial, Serena.
— Eu sei. Ele é rico.
— Não apenas isso. Claro, já seria suficientemente difícil. Mas você é uma fugitiva. Eu estaria indo totalmente contra a corrente, tentando acima de tudo mantê-la segura frente a isso.
Serena sentiu um aperto no peito.
— Eu pago. Quanto for.
— É mais do que dinheiro, Serena.
— Eu sei disso, senhor. É exatamente por isso que preciso de sua ajuda, mais que tudo!
Ela ouviu sua voz ecoando pelo escritório, se perdendo entre os vãos dos livros nas estantes. O Observador soltou um longo suspiro e afagou as mãos em seu casaco.
— Eu irei.
A menina continuou olhando curiosa, em dúvida se de fato aquilo era uma confirmação.
— Eu já gostei mais de desafios. Acho que não estou meio velho pra essas coisas. — ele abriu um sorriso amarelo e frágil.
Serena acompanhou seu sorriso.
— Mas espero que saiba onde estamos pisando. — acrescentou ele.
— Como assim?
O Observador parou para pensar, como se escolhesse com cuidado as próximas palavras frente aos olhos instigados e brilhantes de Serena.
— Sei que ele é seu pai. Mas, se nunca mais ouvimos falar dela... Não sei o que ele foi capaz de fazer para fazê-la desaparecer.
A loura engoliu em seco, mas retorquiu com uma certeza que, ainda que não tivesse, soou firme o suficiente:
— Senhor, eu só preciso saber essas respostas. Custe o que custar.
O homem ficou a encará-la. Seus olhos azuis não piscaram. Ele concordou com a cabeça, convencido, e se ajeitou em sua cadeira. Puxou um bloco de anotações de uma das gavetas e procurou por alguma folha usável. Havia um certo tempo que não se envolvia com mais nenhuma atividade. Não uma que de fato utilizasse sua energia. Em meio aos comentários soltos, Serena indagou, cuidadosa.
— Por que você concordou?
Ele levantou o olhar brevemente, e ela jurou vê-lo desviar para as fotografias.
— Digamos que eu sei como é perder alguém que amamos.
Ela não perguntou mais. Preenchidos pela quietude, um celular de modelo meio velho começou a tocar, e o homem apenas lhe dirigiu uma expressão de desagrado. Contudo, após examinar por alguns segundos o número que discava, mostrou-se intrigado. Colocou o celular na orelha e, embora Serena evitasse, não conseguiu deixar de ouvir a conversa, dado o tom que o detetive lhe atribuiu.
— Código E? — indagou o Observador como se tivesse acabado de ouvir um palavrão.
E começou a anotar rápido em outra página.
— Edifício Aube, Estival Avenue, número trezentos e dezessete. Certo, vou para aí imediatamente.
Serena deu um salto quando ouviu o endereço.
— Serena, peço imensas desculpas, mas tenho uma emergência. — falou ele fechando o bloco de papel e guardando algumas coisas no bolso.
— Eu vou com você! — ela se levantou.
— Negativo. Não posso levá-la comigo.
Serena fechou os punhos.
— Senhor, esse lugar é onde meu primo está!
♠ ♣ ♠
Eram tímidos os raios de luz que ousavam transpassar pelas janelas tapadas do casebre. Em um local onde nem mesmo o brilho da Cidade Luz podia alcançar, diversas almas perdidas da metrópole se reuniam. Os jovens tinham das mais diversas idades, desde uma criança que ainda aprendia a falar no colo de sua mãe – que talvez tivesse em torno de quinze anos – a alguns mais adultos, já com barba e cicatrizes no rosto.
Se sentavam como que em roda. As expressões atormentadas se entreolhavam, sussurros atravessando e tentando se fazer audíveis em meio aos ruídos caóticos daquelas vielas de Lumiose. Lá não se ouvia o som dos turistas ou os anúncios dos vendedores das avenidas. Uma figura mais alta, de cabelos arrepiados e selvagens caminhava de um lado para o outro. Sua expressão fechada significava problemas para qualquer um que o conhecesse. Subitamente, desferiu um soco em uma mesa de madeira escura, fazendo suas pernas tremerem e um eco ressoar pelas paredes frágeis.
— Pegaram a Eris. — resmungou. — Porra!
Seu rugido fez um silêncio imediatamente se instalar. Após respirar ofegante algumas vezes, virou os olhos agressivos em direção a um rapaz que devia estar em torno dos dezesseis anos, com seus cabelos negros espalhados caindo no rosto. Deu alguns passos em sua direção. O outro engoliu em seco. Tocou o dedo indicador em seu peito. Ele sentiu a pressão apertando-lhe o tórax. Charlie, um tanto distante, prendeu a respiração.
— Marc. — falou o líder. — Você vai ficar responsável pela parte dela. — pausa. — Tá ligado?
Marc se demorou por alguns segundos, mas foi capaz de manter a expressão séria. Apenas acenou positivamente com a cabeça. A responsabilidade nova fez com que levasse alguns tapinhas de congratulação. Novamente, seu irmão mais novo sentiu um calafrio, como se fosse ele a tomar a nova responsabilidade.
— Eu tenho medo deles.
Ele se virou para o lado. A confissão veio de uma voz fraca, como que se tivesse escapado da emissora sem real intenção de ser ouvida. Era uma menina, Charlie nunca havia visto ela antes ali. Tinha cabelos escuros longos caindo desajeitados e ondulados pelos dois lados do rosto, e ombros tão retraídos que parecia uma bolinha. Apertava contra seu peito uma pequena criatura, ainda filhote – um Espurr, de pelos cinzas emaranhados. Charlie reconhecia aquele tom perdido que seus olhos tentavam esconder – ele também os tinha.
— Eu também. — murmurou em resposta.
Ela levantou a cabeça ligeiramente, procurando consolo no novo amigo. Ele abriu um sorriso aconchegante, tentando aliviar a tensão. Charlie sabia como era ser novo na Lumiose Gang. Geralmente as crianças que começavam a integrá-la não traziam consigo um histórico agradável.
— Como é seu nome? — inquiriu ela.
— Charlie. — falou, baixinho. — E o seu?
— Prazer, Charlie. — ela finalmente conseguiu desenhar um sorriso tímido. —  Eu sou a Emma.
♠ ♣ ♠
— De novo não, Essentia. — murmurou o Observador para si mesmo.
O carro do detetive era de um modelo antigo. Tinha algumas partes gastas e mesmo quebradas – a menina hesitava de perguntar o que poderia ter acontecido. Certamente o homem já havia vivido alguns capítulos intrigantes durante suas investigações no passado. Ainda assim, ele parecia tenso naquele momento, de uma maneira anormal.
Quando chegaram, Serena fez o que pôde para se disfarçar. Correram para dentro do prédio, onde várias pessoas tentavam evacuar. Ao atingir a sala que haviam citado, se depararam com um caos. Dois Crobats cortavam o ar com uma velocidade absurda, quase ferindo as pessoas no espaço. Serena fitou aquela figura misteriosa causando um rebuliço no ambiente, sem conseguir se conter:
— … de novo…
O Observador a encarou.
— Você a conhece?
— Ela invadiu a Tower of Mastery, em Shalour… E roubou diversos documentos relacionados às Mega Evoluções. — disse a garota.
Calem tomou um susto ao perceber que sua prima estava ali. Não conseguiu falar nada, pois precisou desviar de um Air Slash naquele momento. Ashley tentou correr em direção à androide, mas o garoto a segurou.
— O que pensa que está fazendo?
Ashley cerrou os olhos.
— Eu não vou sentar e assistir a alguém levando todo o meu trabalho embora!
A garota, tentando se esconder, correu até um casaco pendurado na porta.
— Elgyem, Psybeam!
De sua Pokébola, revelou uma criatura que emitiu uma sequência de ruídos curiosos, parecidos com as grandes histórias de extrarrestres. De suas misteriosas luzes, disparou um feixe suficiente para confundir os dois morcegos que pairavam pelo ambiente. Calem se aproveitou do momento para ir até sua prima, segurando-a pelos ombros.
— O que você está fazendo aqui?!
— Longa história... — murmurou ela.
— A polícia deve chegar logo. — falou ele. — Precisamos ir embora.
Simultaneamente, um pequeno Pokémon deu alguns passos à frente. Serena tomou um susto: era um Espurr. Colocou instintivamente a mão em suas coisas, mas a Pokébola de Mary ainda estava lá. Antes que o mistério parecesse sem resolução, o Observador soltou um grito:
— Mimi!!
Talvez tivesse vindo com eles – o banco de trás do carro do Observador estava tão bagunçado que ela não teria reparado se um dos casacos jogados fosse, na verdade, um ser vivo. O Pokémon avançou contra a androide, que se preparou para contra-atacar, mas algo a impediu. Subitamente, seu traje robótico pareceu entrar em um estado de confusão, parando de responder de maneira padronizada. Naquele instante, Serena teve um estalo.

— Aconteceu exatamente isso na última vez, Cal. — falou a garota, roubando sua atenção. — A Mary ajudou a pará-la, na torre de Shalour.
O garoto suou frio. Todos ficaram tensos de se aproximar da androide enquanto enfrentava algo similar a um bug. Ajoelhou-se no chão, atormentada, enquanto o pequeno Espurr parecia utilizar de suas habilidades psíquicas. Era como se houvesse alguém ali, alguém tão humano capaz de reagir a estímulos como qualquer outro na sala. Entretanto, um som mecânico ecoou pela sala.
— Transferência completa.
A androide como um raio saiu pelo mesmo local que entrou, vagando com saltos tão altos que ganhou as alturas e desapareceu por entre os prédios de Lumiose. As sirenes ecoavam pelos arredores, restando a Calem apenas o tempo de segurar na mão de sua prima. Ele lançou um olhar para Ashley, que parecia abalada demais para falar qualquer coisa, e fugiram, deixando para trás os destroços do laboratório, enquanto o Observador apenas conseguia vê-los partir.
♠ ♣ ♠
A tarde caía na Autumnal Avenue. Naquele período do ano, ainda fazia calor. O Sol tardava a se pôr, as ruas ficavam mais cheias e coloridas. Naquele dia, Charlie e Emma tiveram sorte. Haviam conseguido alguns trocados para visitar a Juice Shoppe, famosa franquia de Kalos sediada em Lumiose onde se podia escolher dentre diversas berries para montar uma bebida. Era o menor copo, e eles tinham de dividir – mas pelo menos era suficiente para que matassem a vontade. Ele chacoalhou o copo, estendendo para ela.
— Pode terminar.
A menina abriu um sorriso. Tomou um gole pequeno, deixando poucas gotas, e estendeu.
— Pode terminar.
Ele riu. Ficaram assim, tentando tomar o menos possível para deixar mais para o outro. O Pancham de Charlie o acompanhava, caminhando tranquilo pela rua, vez ou outra mexendo com o Espurr de Emma, ocasionalmente resultando em uma briga inocente. Thanos se recuperara bem com o passar das semanas e razoavelmente havia se adaptado à vida de Charlie. Pelo menos tinham a companhia um do outro.
Dizer que as coisas estavam perfeitas seria arriscado. Uma das primeiras coisas que se aprendia na Lumiose Gang era de evitar este tipo de conceito, onde se esquecia que o pior estava a apenas a um piscar de olhos de emergir diante da calmaria. Mas Charlie, durante aquela época, quase esqueceu.
Quase.
Quando alcançaram de volta sua morada, apostando uma corrida, o menino freou ao encontrar seu irmão parado, com uma expressão fechada. Não conseguiu ver seus olhos, pois um par de óculos escuros os cobria. Emma ficou muda quando o viu. Marc puxou Charlie pela camiseta, arrastando-o para um dos becos no arredor.
— Onde tu tava a manhã inteira? — inquiriu, quase gritando.
Charlie se empurrou contra a parede – seria um ótimo momento para entrar dentro dela.
— Eu tava… Dando uma volta.
Silêncio. Marc apertou os próprios dedos na mão, logo chacoalhando o garoto, que em um instante entrou em estado de alerta.
— Tá achando que isso é o quê? — indagou o irmão, aproximando seu rosto. — Brincadeira de casinha?
E largou Charlie. O menino se encolheu.
— Você tá diferente…
Marc balançou a cabeça.
— Tu não entende… — ele suspirou. — Primeiro aquele Pokémon… Agora…
Dos curtos instantes em que Marc se perdeu, fez o possível para retornar à linha. Segurou o irmão com força, força suficiente para que sentisse medo. Aquele dia foi um divisor de águas. Marc outrora fora o porto-seguro de Charlie. Ele sabia que enquanto o tivesse, as coisas estariam mais seguras em casa. Contudo, com o passar dos meses dentro da gangue, o rumo passou a ser outro. Aos poucos seu irmão se afastava da memória que Charlie construiu, tomando uma forma que sequer o menino tinha coragem de admitir.
— Charlie, abre o olho! — gritou Marc. — Tu não é um treinador Pokémon. Tu não é um moleque qualquer. E se ficar agindo como se fosse…
Charlie sentiu dor com aquelas palavras. Todos os resquícios que tinha de uma vida normal – ou o que quer que essa merda de palavra significasse – eram perigosos, pois ele se esquecia quem era. Ele podia passar a tarde fora, que quando voltava, se recordava de onde estava, e com quem estava. Mas só anos mais tarde ele descobriu que aquelas palavras também doeram em seu irmão.
Marc cerrou o punho e o levantou. Charlie se cobriu com os braços, como havia muito não fazia. Não desde que saíra de casa. Mas, naqueles curtos instantes, todas as memórias retornaram com um soco, que doeu por lhe arrancar memórias mais tormentosas que o próprio golpe. Aos poucos, ele via os terrores que achou que deixara para trás vivos em sua frente, naquele que era o principal elo entre seu passado sombrio e seu tenso presente: seu irmão.
Marc deu um passo para trás e encarou as próprias mãos trêmulas. Charlie não conseguia encará-lo por detrás dos óculos, e tampouco tentou. Chorou, mas logo percebeu que poderia ser pior se o fizesse. Tentou engolir as lágrimas, com medo de uma nova ameaça.
— Por que você fez isso?
O mais velho cerrou os próprios punhos e respirou fundo. Começou a caminhar para fora, evitando transparecer qualquer emoção. Suas últimas palavras saíram soando como um perdido desabafo; foi talvez a última vez que Charlie ouviu esse tom de seu irmão, ao dizer:
— Pra você não esquecer quem você é.
♠ ♣ ♠
— …parece que a Campeã terá problemas — disse o comentarista da televisão.
— Quem diria… Depois de tanto tempo, finalmente um desafio. — concordou outro. — As apostas estão altas, a desafiante conseguiu vencer todos os membros da Elite sem grandes dificuldades…
A televisão desligou.
O homem abaixou o controle remoto, abrindo um sorriso. Em seguida, se virou para a vidraça imensa, observando as luzes brilhantes das diversas ruas de Lumiose, como um céu cheio de estrelas. Lysandre tocou o vidro, admirando aquela beleza que talvez estivesse com os dias contados, a perder de vista.

    
    

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