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Notas do Autor - Capítulo 32
ALERTA DE SPOILERS! Antes de ler as notas, leia o capítulo correspondente primeiro! |
Aparições surpresa em plena segunda-feira!
Seguindo jornada com nossos protagonistas, chegamos a Coumarine City, a cidade portuária! Espero que aproveitem nossa estadia nessa cidade, pois passaremos alguns poucos capítulos por aqui. Confesso que fiquei um pouco decepcionado nos jogos que ela não tinha muita importância, pois gosto muito da geografia dela, de ser dividida em duas partes, e especialmente por ter um importante porto. Contudo, consegui incluir alguns acontecimentos especiais enquanto estivermos aproveitando desse momento.
Acho que estes primeiros capítulos da Saga Y rememoram um pouco a Saga X. Por mais que eu tenha vários acontecimentos programados, começamos em ritmo relativamente lento. Todos eles incluem eventos importantes e algumas peças do enredo para montarmos o quebra-cabeças dos próximos arcos - mas a organização dos capítulos lembra um pouco aquele típico começo de jornada.
Algo que ouço com muito carinho é quando dizem que os personagens da história estão equilibrados. No começo da fanfic eu tinha certas dificuldades pois, como o Calem era o único treinador, era difícil mediar os papéis dos demais personagens. Com o tempo, porém, tudo foi fluindo naturalmente de maneira que ao final da Saga X cada qual tenha mostrado como possui sua importância no enredo. Nessa temporada - e já nesse capítulo - percebemos como cada qual está tomado por suas ambições pessoais, sem querer preocupar os demais: A Serena em busca de respostas sobre sua própria vida tentando se libertar derradeiramente; o Calem entrando em contato com seu lado mais intenso a fim de se tornar um melhor treinador (e uma melhor pessoa); o Charlie cada vez mais espremido por seu passado, percebendo que as consequências estão prestes a estourar. Posso dizer que esse balanço entre os três será cada vez mais intenso, e prometo que todos terão sua chance de brilhar de um jeito especial nos próximos arcos.
Espero que tenham todos tido uma agradável leitura e espero vocês por aqui semana que vem, com mais um capítulo! (Depois de um ano sumido, vamos aproveitar enquanto tem capítulo escrito!)
Capítulo 32
CAPÍTULO 32
Minha História
A brisa da manhã estava com mais agitação que Coumarine City geralmente oferecia a seus moradores. O céu se fechava em nuvens espessas, fazendo uma camada acinzentada até onde os olhos alcançassem. O mar balançava em tons escuros com moderada agressividade, obrigando alguns barcos a permanecerem ancorados no porto da cidade. Era de perder de vista o número de embarcações que se colocava nas docas, uma vez que estavam frente ao maior porto de Kalos.
Serena admirava com calma o ritmo
de Coumarine. Da parte superior, conseguia observar uma vista agradável das
áreas mais montanhosas. Era dividida em duas zonas, a cidade alta – entre as
colinas – e a baixa – à beira do mar. Era interessante como representava a
diferença de relevos entre a área central e costal de Kalos, abrindo caminho
para o interior. Apesar da chuva forte na noite anterior, o céu ainda não havia
se limpado totalmente.
— No que está pensando?
A menina se virou para trás, sem
antes ter ouvido os passos de aproximação. Calem mexia uma xícara de café com
uma pequena colher de metal. Ela balançou a cabeça, dançando os fios louros no
ar.
— Coisa boba minha.
— Escute… — suspirou ele. — Sinto que tenho sido um pouco injusto com
você nas últimas semanas.
A garota devolveu-lhe um olhar
atento, vendo sua feição cansada repousar a vista no céu nublado.
— É só que… Não é fácil encarar que
essa é nossa nova vida… Parecia um pensamento tão certo, mas quando eu percebi
que tínhamos entrado em um beco sem saída…
— Não é sem saída. — interrompeu
ela, baixinho.
— Eu não consigo ver uma saída. —
retorquiu ele. — Eu realmente quero, mas eu não consigo. Não uma boa saída.
Ele encarou a xícara quente. Nada
como um café da manhã para esquentar frente à virada climática de Kalos.
— Não quero que pense que te culpo
por isso. — admitiu. — Pois isso não é culpa sua.
— Nem sua. — devolveu ela.
Ele assentiu lentamente.
— Eu vou aprender a lidar. Mas
preciso de tempo.
A menina encarou seus dedos
ansiosos se entrelaçando sozinhos. Calem sentou-se ao lado dela e ficaram por
alguns momentos em silêncio, perdidos no horizonte. O som dos lábios sugando a
bebida cortava a pausa longa entre a conversa, até o momento em que o garoto
voltou a encarar sua prima, abrindo um pequeno sorriso.
— O que vai fazer hoje?
— Vou resolver umas coisas minhas.
— respondeu ela com um sorrisinho.
— Tipo…?
— Tipo você vai fazer suas coisas…
E eu farei as minhas.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Desde quando você resolveu agir
misteriosamente?
— Claire é uma garota misteriosa. —
falou a menina com uma piscadinha, se levantando para ir embora.
— Você não venha com essas
baboseiras para cima de mim, Serena Windsor. — resmungou ele, fazendo-a soltar
uma gargalhada.
Os olhos da garota corriam pelas
prateleiras. Havia estantes até onde os olhos perseguissem. Coumarine era
dotada de uma considerável biblioteca na parte baixa da cidade, uma vez que
reunia pontos bem tradicionais da região. A luz entrava por janelas superiores,
mas os raios logo se perdiam nas paredes e chão amadeirados de tons escuros.
Amplas estantes se distribuíam em corredores, repletas dos mais variados livros
trazidos naquele ponto de diálogo de Kalos com o restante do mundo.
Serena se perdia entre os títulos.
Já quase nem lembrava o que fora fazer por lá. Ela sabia que, mesmo que
começasse a ler naquele segundo, talvez nunca conseguisse terminar a biblioteca
toda – mas com certeza não lhe faltava vontade para tentar. Desde os
conhecimentos mais ancestrais sobre a formação de Kalos até contos cotidianos
escritos nas cidades interioranas de Kanto. Que belo universo a desbravar.
Vez ou outra pegava um exemplar das
estantes, só para xeretar. Era difícil manejar um livro e um ovo Pokémon, mas
ela os revezava nas mãos. As folhas de vários já amarelavam, mais finas e
empoeiradas que quando foram impressos. As histórias que carregavam, porém,
permaneciam intactas. Ela queria muito pegar alguns, mas nunca viria a
devolvê-los, pois passariam uma estadia relativamente curta em Coumarine. E,
afinal de contas, ela tinha o que fazer.
Levantou a cabeça para frente,
quando um garoto atravessou por entre as estantes. Intrigada, ela deu alguns
passos à frente, tentando não perdê-lo de vista. Quando o viu entrar em um
corredor, seguiu seus passos, até ser interceptada, levando um pequeno susto
com o regresso à realidade.
— Posso ajudar?
Um senhor mais baixo que ela estava
em sua frente. Usava roupas que pareciam ser de jardinagem, apesar de
reforçadas para enfrentar o frio que vez ou outra pairava sobre a região. A
ideia era fortalecida pelas botas levemente sujas com terra, e uma imensa
tesoura que carregava consigo. A feição que tinha, todavia, era extremamente
simpática e prestativa, abrindo um sorriso sincero para a menina que quase fez
seus olhos desaparecerem.
— Que susto! — exclamou a menina.
— Oh, desculpe! — falou ele, sem jeito. — Você parecia perdida,
jovenzinha.
Ela coçou a cabeça, um pouco sem
graça.
— Acho que aceito uma ajuda,
senhor…
— Ramos!
— Prazer, senhor Ramos! Meu nome é
S… Claire! — ela se corrigiu. — Claire Duval.
— É um prazer, jovem Claire. — ele
concordou com a cabeça. — Que belo ovo temos aqui… — observou ele. — Qual a
espécie?
Ela acariciou o ovo com as mãos.
— Eu não sei ao certo…
— Hm, uma surpresa! — ele abriu um
sorriso novamente. — Interessante!
— Sabe dizer se estou no caminho
certo? — inquiriu ela.
O velho senhor resgatou seus
óculos, guardados meio sujos no bolso de seu casaco. Colocou e arregalou os
olhos, encarando o ovo. Ramos tocou com suavidade a casca, deslizando os dedos
pelo comprimento, sentindo a textura. Não evitou desenhar um sorriso novamente
em seu rosto marcado pela idade.
— Ele tem uma aparência saudável! —
falou, com uma risadinha. — Apenas tome cuidado com os movimentos que você
realiza na companhia dele, e cuidado para que não pegue temperaturas muito
amenas. Kalos às vezes resfria consideravelmente, e bebês precisam do calor
para se desenvolverem.
Serena assentiu, extremamente
satisfeita com a resposta.
— E o que o senhor está fazendo por
aqui?
— Oras, precisava consultar um velho
livro de jardinagem. — respondeu o senhor, rindo. — Com o passar das décadas,
alguns nomes parecem que fogem da nossa memória.
Abriu-se um silêncio, e ele pareceu
instigado com o olhar curioso da menina dançando pelas lombadas dos livros
arrumados nas prateleiras.
— O que exatamente você está
procurando? — indagou a Serena.
A menina pareceu precisar de alguns
momentos para formular alguma resposta adequada. Afagou os braços ao redor de
seu ovo.
— Hm… Eu estou procurando sobre uma
pessoa. — falou, singela.
— Certo. — prosseguiu ele,
depositando a mão sob o queixo de maneira pensativa.
— Eu quero saber mais sobre ela…
Mas não sei exatamente onde procurar. — continuou.
— Você sabe o nome dela? —
questionou ele.
A menina deu uma risadinha
constrangida.
— Não exatamente…
O velho soltou um riso.
— Bem, o que sabemos sobre ela?
— Sabemos que… Bem… — ela corou, um
pouco desconcertada. — Senhor Ramos, na verdade, é um assunto um pouco particular…
— comentou, tímida. — Tudo bem se eu…
— Oh, é claro, sem problemas. — respondeu ele, abanando as mãos. — Desculpe
se a pressionei. Mas, sabe, deveria checar nos arquivos da cidade.
— Arquivos? — perguntou ela
curiosa.
— Boa parte das documentações dos
habitantes de Kalos se concentra fisicamente nos Arquivos, na Cidade Alta. —
comentou o velho, pensativo. — Faz alguns anos que está desatualizado, mas
talvez encontre algo que possa ajudá-la.
Ela abriu um sorriso, satisfeita.
— Obrigada, senhor Ramos! Será de
grande ajuda! — falou.
O som das ondas e dos Wingulls
voando pelos ventos litorâneos não parecia tão animador naquela manhã. O céu escurecido
se mostrava um tanto fúnebre para Charlie, que colocava-se perdido encarando as
embarcações das mais diversas formas e cores distribuídas pelo porto. O cheiro
de sal e de peixe nunca esteve tão fresco e enjoativo quanto naquela ocasião.
As águas pareciam mais turvas, uma vez que a área era onde todos os barcos
chegavam, misturando óleo com alguns artigos que caíam dos navegantes.
Ainda assim, seguiu caminhando pelo
espaço. Serena e Calem haviam saído sem grandes satisfações. Ele também não
queria se juntar a eles forçadamente. Era irônico, pois no momento em que mais
deveriam estar unidos, mais pareciam, de certa maneira, distantes. Ele
respeitava o tempo deles. Ele já estava acostumado a fugir. Eles não.
De fato encontrou o que procurava.
Era apenas um palpite, mas estava certo. Um garoto apoiava-se em um dos barcos,
descarregando caixotes para o cais. Suas pernas bambeavam levemente com a falta
de firmeza da embarcação na água. O rapaz, de cabelos curtos e enrolados
levantou seus olhos castanhos em direção ao garoto. Charlie abriu um pequeno
sorriso, fazendo um aceno com a mão.
— Ludovic. — cumprimentou.
— Charlie! — exclamou o garoto,
soltando o caixote antes de chegar ao chão. — Há quanto tempo!
O outro fez um sinal com as mãos,
sugerindo que abaixasse o tom.
— Não anuncia, meu caro. — disse,
com um sorriso tímido.
O outro deu uma risada
desconcertada.
— Foi mal. É que realmente fiquei
surpreso. — respondeu. — Devem fazer anos…
— Anos. — concordou Charlie.
Ludovic encontrou-o para um abraço.
Por mais que não se prolongasse por muito, Charlie sentiu-se à vontade naquele
momento, respirando fundo. Encontrou um curto conforto no contato, compensando
os anos perdidos nos poucos segundos. O outro, assim que se afastou, passou o
braço pela testa suada. Bateu as mãos na calça e descarregou mais um dos
caixotes. O amigo sentiu-se na obrigação de ajudá-lo.
— Tenho visto seu rosto nos
jornais, meu chapa. — comentou, só então o encarando — Se envolveu em problema
dos grandes, dessa vez.
—
Eu não me contento com pouco. — respondeu, dando de ombros.
— Caramba… Charles Stuart… — ponderou o garoto
novamente, ofegante, depositando as mãos na cintura. — Quem diria? Mundinho
pequeno esse.
Charlie o acompanhou para tirar uma
das caixas mais pesadas. Tinha alguns artigos de pesca metálicos que faziam
barulho conforme se movimentavam. O garoto limpou uma mão na outra enquanto
descansava por alguns curtos momentos.
— Sabe de algum dos outros garotos?
— perguntou Charlie.
Ludovic deu um sorriso meio sem
jeito.
— Você sabe como é, cara. Não os
vejo há quase tanto tempo quanto você. — respondeu, simplesmente. — Não faço
ideia de que caminho tomaram. Mas ninguém deve ter sido bobo de continuar em
Lumiose.
Charlie desviou os olhos para o mar
– a imensidão azul-acinzentada que se estendia, decorado pelos vários grandes
barcos ancorados. Um vento frio balançou suas roupas, refrescando um pouco do
esforço físico que acabara de fazer. Thanos descansava apoiado em um poste,
observando o movimento.
— Você parece bem. — falou o
menino, por fim, em um tom singelo.
Ludovic o olhou nos olhos.
— Eu tô. — falou, com um sorriso. —
Vim morar em Coumarine, trabalho um período por aqui… É meio puxado, mas melhor
que a vida nas ruas.
O outro concordou, com conhecimento
de causa.
— E você, o que anda fazendo? —
indagou de volta. — Além de fugir da polícia.
— Ando por aí com uns amigos. —
respondeu. — Tipo uma jornada.
— Uma jornada. — Ludovic se
levantou, olhando para as águas. — Quando criança a gente morria de vontade de
sair em uma jornada. Que bom que você tá realizando isso. — falou, com sinceridade.
— E teu irmão?
Charlie não demonstrou a hesitação
que sentiu naquele instante, chacoalhando seu interior, rememorando os
pensamentos mais diversos e bagunçados de sua cabeça.
— Encontrei ele um dia em Lumiose.
— disse, simplesmente.
— Ele ficou irado da cara quando
você foi embora. — falou Ludovic, sério. — Eu, se fosse você, não pisaria por
lá em um bom tempo.
O outro engoliu em seco. Como
explicar que ele já havia recebido o recado de uma maneira bem enfática?
— Posso imaginar.
Ludovic olhou para o barco de pesca
e conferiu, mas todos os caixotes já haviam sido descarregados. Ele estendeu a
mão, abrindo um sorriso.
— Meu caro, preciso resolver
algumas outras coisas ainda. Mas, se for ficar pela cidade, dá uma passada
quando puder. — ele apertou a mão do amigo e o puxou para um abraço. — Em nome
dos velhos tempos.
— Em nome dos velhos tempos. —
repetiu Charlie, um pouco sem jeito, afagando-se no abraço.
As palavras lhe escaparam por um
momento. Tempos depois se arrependeria por nem conseguir formular uma despedida
simples, mas permitiu que os gestos tomassem conta. O abraço de alguém que
viveu seus piores dias ao seu lado é único, é especial. Ele se encaixa, porque
rememora um gosto de esperança no período em que ela mais esteve em falta. Era
esperança que o garoto voltava a precisar.
Preparou-se para fazer o caminho
inverso na companhia de seu Pancham, quando ouviu um último ruído do rapaz,
antes de ir embora:
— Ei, Charlie.
O rapaz se virou. Ludovic encarava
sério os barcos no cais.
— Longe de mim querer falar igual
esses merdinhas da TV, como se fosse coisa fácil. Tô ligado que não é. — disse
o rapaz. — Mas, se tiver a oportunidade de voltar atrás, volta, cara. Minha
vida não é perfeita. Mas nada paga minha tranquilidade de deitar no travesseiro
de noite e saber que meus fantasmas das ruas de Lumiose foram embora.
Charlie abriu um sorriso de papel,
frágil. O garoto jamais entenderia o que estava acontecendo e, de certa
maneira, ele era grato por isso. Desejava mais que tudo que aqueles que o acompanharam
no passado encontrassem a tranquilidade. Alguns, felizmente tinham sorte – o
que, nos olhos de um dos garotos perdidos de Lumiose, poderia ser tomado como
sorte. Será que algum dia ele também encontraria sua própria paz?
— Eu vou,
Ludovic. — prometeu.
Calem respirou fundo. Era
impossível abandonar a tensão de ser um fugitivo – a todos os momentos seus
olhos pesquisavam se alguém o observava. Porém, quando na paisagem certa, sua
mente conseguia momentaneamente esquecer quem era e se desligar. Coumarine City era um desses lugares.
Na parte alta da cidade, os ventos
mais fortes bagunçavam as folhas das árvores. Estava por uma campina, recostado
a uma árvore. Ele gostava do tempo nublado, embora a brisa parecesse
premonitória de uma nova tempestade. A harmonia das folhas farfalhando e o mar
quebrando no porto parecia uma melodia doce que permitia que o rapaz se
concentrasse melhor em sua leitura.
Um bom dia de descanso. Até que uma
voz aguda e imperativa cortasse sua paz.
— Ei, você!
Calem levantou o olhar. Um garoto o
encarava a alguns metros de distância, o indicador apontado em sua direção. O
rapaz deslizou a cabeça para os lados, procurando algum outro alvo, mas estavam
sozinhos pela campina. O outro era baixo, mal deveria ter a altura de Serena.
Os cabelos bagunçados se escondiam por baixo de um boné, enquanto um sorriso
aventureiro se estampava de orelha a orelha.
— Eu o desafio para uma batalha! —
prosseguiu o menino, com um tom confiante.
Calem quase fechou o livro.
— Mas eu não fiz nada para você. —
respondeu Calem, dúbio.
O menino coçou a cabeça, confuso.
— Eu só quero uma batalha, pode
ser, tio?
— “Tio”? — indagou de volta o
garoto, ofendido, se levantando do chão (coberto por uma toalhinha) — Escute
aqui, garotinho, quantos anos você pensa que eu tenho?
— Do jeito que você fala, parece
ter uns cinquenta. — retorquiu o outro, depositando os braços atrás da cabeça.
Calem quase caiu no chão.
— Oras, e você que sequer entrou na
puberdade ainda e está querendo opinar na minha existência. — falou,
revoltando.
O menino arqueou as sobrancelhas,
cruzando os braços.
— Para sua informação, eu tenho doze
anos muito bem completos! — argumentou.
— Meu deus, doze anos. — Calem
coçou a cabeça. — Você é tipo um bebê.
O outro pareceu furioso, cerrando
as mãos.
— Quer parar de falar assim? Você
não é tão mais velho que eu!
— Oras, não foi você que disse que
eu parecia mais velho agora há pouco?
— Humpf, então deixa. — falou, dando de ombros. — Não quero mais batalhar
também.
Os dois se interromperam ao ouvir
uma sequência de gritos. Não muito longe dali havia um PokéMart, e algumas pessoas pareciam fugir preocupadas de perto do
espaço. Os dois garotos trocaram olhares, duvidosos.
— O que é isso? — perguntou o mais
novo.
— Parece que estão tentando roubar
aquela loja. — comentou Calem.
O outro começou a andar na direção
da confusão, sendo interceptado por Calem, que o segurou pelo ombro.
— Aonde você pensa que vai, senhor doze
anos? — inquiriu.
— Estou indo impedir eles. — falou
o outro, dando de ombros.
— E o que você pensa que pode fazer
contra ladrões? — falou Calem, quase rindo. — Eles podem ser perigosos.
— Tio, eu sou um treinador Pokémon.
— retorquiu o outro ajeitando o boné. — Eu não tenho medo de nada.
O garoto começou a correr em
direção à loja. Calem foi pego de surpresa pelo menino, encarando-o se
distanciar. Mesmo que respondesse, o outro não ouviria a resposta. A
impulsividade foi tanta que o rapaz sequer permitiu-se pensar muito também,
apenas correu em direção a ele, tentando alcançá-lo. O jovem virou-se para
trás, confuso.
— Tá indo comigo? — perguntou.
— Prevejo mais uma atitude
irresponsável que eu me arrependerei cinco minutos depois, mas sim, estou indo.
— respondeu Calem com um suspiro, quase que para si mesmo. — Não vou deixar uma
criança fazer uma burrada dessas.
— Cuidado pra não machucar a
coluna. — falou o outro, mostrando a língua.
— Grr, crianças não querem mais saber de respeitar os mais velhos.
Os atendentes do PokéMart estavam rendidos, com as mãos
levantadas. Por mais que houvessem sistemas de segurança, a dupla de ladrões gritava
ordens. Eram acompanhados por Pokémon: Um deles trazia consigo um Ursaring que,
ao se colocar de pé, quase batia no teto do estabelecimento – com uma expressão
tão feroz que intimidava os atendentes a oferecerem aquilo que possuíam em
caixa sem titubear. O segundo tinha um Skuntank, que mostrava os dentes em meio
aos pelos desgrenhados, tão fedidos que o ambiente parecia se intoxicar só com
sua presença.
— EI! PARADOS AÍ!
Os ladrões encararam a porta
instintivamente, se virando com seus Pokémon. Parecia uma cena dos filmes
antigos que Calem gostava de assistir quando mais novo – os ladrões mascarados
assaltando um pequeno estabelecimento, e os mocinhos chegando para interceptar.
Seu novo amigo de doze anos não demonstrou estar intimidado com a gritaria dos
bandidos, e tampouco com os olhares ferozes do Ursaring e do Skuntank.
— Deveríamos mesmo ter chamado
tanto assim a atenção? — cochichou Calem, suando frio com a situação.
— Pivete, se sabe o que é bom para
você, sugiro que dê meia volta e fuja agora! — falou um dos capangas, lhe
apontando o dedo.
Segundos de tensão se estenderam. O
garoto tentou permanecer firme em sua pose. Calem sentia seu coração quase sair
pela boca. Sabia o risco que corria, mas não poderia fazer qualquer movimento
brusco naquele momento. De repente, um dos ladrões bradou:
— Skuntak, use Smokescreen!
O Pokémon levantou sua cauda enorme
e peluda, emitindo uma grossa névoa enegrecida que cobriu a visão de todo o
espaço momentaneamente. Não evitaram tossir com aquela bruma tóxica que fez os
olhos coçarem e os sentidos se perderem por um curto período de tempo. Calem
puxou o garoto para si.
— Fique atrás de mim. — disse.
— Qual é, tio? Eu não preciso de
proteção! — resmungou o outro, empurrando.
Ouviram:
— Ursaring, Slash!
De repente, cortando a fumaça
surgiu o enorme Ursaring, derrubando seu braço com as garras afiadas que mais
parecia um machado. O menino empurrou Calem ao perceber a movimentação, de
maneira que ambos conseguissem despistar o golpe a tempo de não serem
atingidos. O jovem, logo se recompondo, ajeitou seu boné com um olhar de poucos
amigos.
— Se for pra me atrapalhar, é
melhor você ir embora! — resmungou.
— Será que dá para parar de achar
que tudo isso é um jogo? — falou Calem, logo se levantando.
— Até dá. — disse o menino, puxando
uma Pokébola. — Mas daí perde a graça.
Acompanhando o movimento, Calem
resgatou uma das esferas também. O outro atirou-a para frente.
— Vai, Charmeleon!
— Honedge, saia! — acompanhou
Calem. — Use o Swords Dance!
O garoto liberou um dragão de
estatura média, de pele alaranjada tão dura quanto uma armadura capaz de
resistir às chamas de um vulcão. Era um Charmeleon, a evolução de um dos
clássicos iniciais de Kanto, e uma espécie relativamente rara em Kalos. Honedge
colocou-se logo em posição de batalha, realizando movimentos no ar, afiando sua
lâmina conforme o comando de seu treinador.
— Que tipo de golpe é esse? Ele nem
causa dano. — inquiriu o menino mais novo, revirando os olhos.
Calem arqueou uma sobrancelha.
— É um golpe que aumenta o nível de
ataque do meu Pokémon. — retorquiu. — Não é só porque um ataque não causa uma
explosão que ele não é útil, lutar é uma questão de estratégia.
— Blá blá blá, fala demais. —
resmungou o outro, abanando o resto da névoa dissipada pelo Skuntank. —
Charmeleon, Flamethrower!
— Skuntank, use o Acid Spray.
O Pokémon venenoso levantou a cauda
uma nova vez, esguichando um líquido de cor castanho-esverdeada. Todos se
abaixaram ao perceber que a substância corria algumas das superfícies
atingidas. Charmeleon desviou, enquanto Honedge permaneceu intacto frente ao
golpe, tendo seu revestimento metálico imune aos venenos.
— Use o Shadow Sneak! — ordenou Calem.
— Fire Fang! — prosseguiu o outro.
A espada aproveitou-se da penumbra
para se incorporar às sombras, golpeando de supetão o Skuntank adversário com
seu poderoso nível de ataque. O dragão avançou em direção a Ursaring, mordendo
sua pata. A criatura agonizou com a queimadura mesmo por cima de suas camadas
grossas de pelo. Os ladrões cerraram os punhos.
— Não vamos deixar uma dupla de
crianças estragarem tudo! — resmungou um deles. — Use o Night Slash!
— Fury Swipes!! — acompanhou o segundo.
Skuntank avançou rumo a Honedge, o
golpeando com seus poderes noturnos, causando grandes danos à criatura sombria.
Ursaring, por sua vez, atingiu Charmeleon com uma série de golpes com suas
garras afiadas, afastando o dragão. Os treinadores hesitaram, vendo o
contra-ataque avançar intensamente. O menino rangeu os dentes.
— Charmeleon, não desista! Flamethrower!!
— Honedge, avance com o Pursuit!
A espada avançou cortando os
ventos, investindo com um golpe certeiro em Skuntank. O Charmeleon abriu sua mandíbula
e liberou um poderoso lança-chamas, tão forte que os alarmes de incêndio da
loja dispararam, abrindo uma parte do teto e ativando os irrigadores. Os
ladrões, tendo seus Pokémons derrubados e tendo sido rendidos pelos
adversários, pareceram ceder à posição, quase que intimidados. O menino fez um
estalo de vitória.
— Um bom trabalho. — confessou. — Viu,
não falei que ficaria tudo bem?
Calem ponderou.
— Até que você não é um péssimo
treinador.
— Pra um velho você também não é
mal. — retorquiu ele, mas dessa vez o rapaz apenas soltou uma risada.
O som de sirenes se aproximou.
Calem imaginou a trabalheira em reconstituir o espaço. Talvez eles devessem ter
deixado a polícia agir desde o começo. Sobretudo, foi atingido por um pânico
quando se lembrou que não podia ser visto ali. Não pelas autoridades. O garoto
retornou Honedge para sua Pokébola, regredindo os passos em direção à porta.
— Droga, é melhor eu ir. —
balbuciou.
— Aconteceu alguma coisa? —
perguntou o outro, desconfiado.
— Conte pra eles o que ocorreu,
tudo bem? — disse Calem, começando a sair. — Lembrei que preciso resolver uma
coisa!
A adrenalina tomou conta enquanto
corria, os batimentos do coração disputando com as sirenes em ritmos
descompassados. Ele, contudo, não disfarçava um sorriso. Por um momento, agiu
como um garoto de doze anos inconsequente. Calem sabia que era errado, poderia
estar em perigo, poderia ter sido atacado, as coisas poderiam ter terminado
mal. Mas, naquele momento, tudo terminou bem. Muito bem.
Serena revirava páginas atrás de
páginas. Por onde quer que seus olhos corressem, lá estavam mais caixas
idênticas em meio àquele ambiente de tom clínico. O nariz chegava a coçar com
tantos papéis históricos guardados em uma só salinha que provavelmente não era
bem limpa havia um bom tempo. Não muito à frente, sua Espurr observava um rapaz
dormindo, funcionário do espaço que possivelmente havia sido hipnotizado por
ela.
— Serena Windsor. Serena Windsor. —
murmurava ela.
Após passar por mais uma pilha de
papéis, encontrou algo em seu nome. O coração apertou, mas logo a tensão se
esvaiu e foi tomada pela decepção, ao ver não mais que as informações que não
lhe eram relevantes. Mais uma vez, nada do que precisava. A garota guardou os
papéis de volta nos arquivos, sentando desolada no chão enquanto fitava aquela
imensidão de documentos – tantas palavras inúteis em um lugar só.
— Por onde começo a procurá-la,
mãe? — suspirou, perdendo seus devaneios em meio à imensidão de caixas.