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Notas do Autor - Capítulo 42
ALERTA DE SPOILERS! Antes de ler as notas, leia o capítulo correspondente primeiro!
Com este capítulo damos fim ao arco de Lumiose dessa temporada. Nem acredito que enfim concluímos essa etapa com todas as peças... É até estranho ler um capítulo mais leve e até com certas tiradas cômicas depis de tanta agonia... Não nos enganemos: ainda é a Saga Y, ainda temos grandes temores, mas pelo menos há no que nos agarrarmos. Vamos agora entrar em um novo ciclo, que é o caminho até Laverre.
Charlie e a síndrome do terceiro protagonista
Eu não quis isso quando comecei Kalos. A Serena não seria uma personagem envolvida em competições - o que na época era meio arriscado - e o Charlie consequentemente seria o oposto do "terceiro protagonista". Em partes acho que funcionou. Não perfeitamente, mas com certeza, quando pensam no Charlie, não o assimilam a uma figura de responsabilidade. Ele sempre tentou ajudar e proteger os primos, de certa forma, mas em outras parecia mais atrapalhar que colaborar.
Eis que por muito, muito tempo eu estive atiçando a curiosidade de vocês. Desde os primeiros capítulos ele deixa ambiguidades, contradições, dúvidas e mistérios. Desde o primeiro encontro Serena pede para que ele seja sincero, e ele diz que um dia as coisas farão sentido. Várias vezes outros personagens revelavam desconfiança para com ele. Desde Camphrier ele parece saber de algo que nós não sabemos. Parece que o dia chegou, e finalmente nos deparamos com todo o passado escancarado de nosso personagem, que esteve conosco o tempo todo e, curiosamente, tinha mais camadas e segredos fundamentais a compartilhar que nossos dois parceiros. Talvez vocês nem se lembrem de alguns elementos como a carta mencionada (que Charlie respondeu lá pelo capítulo 14 e o Stevan confrontou a Serena no capítulo 29), mas assim como o Charlie devia a verdade a Serena, eu também devia a vocês.
Capítulo 42
O aroma dos restaurantes que
compunham as avenidas mais turísticas de Lumiose indicavam a chegada de uma
tarde. Após dias de um tempo fechado e gélido, as nuvens pareciam abrir espaço
para que raios de sol brilhassem e trouxessem mais cor às ruas da
metrópole após uma sombria madrugada. Todos os noticiários repetiam as mesmas
notícias, o mundo estava chocado com o atentado ao maior monumento de Kalos.
Contudo, mesmo com todo o temor,
Serena conseguiu permitir que algum indício de tranquilidade lhe consumisse.
Abriram espaço para que ela
dormisse, mas ela pouco conseguiu descansar de fato. Logo acordou algumas horas
depois, vendo o sol espantar as sombras que lhe perseguiam, e mesmo àquela área
retirada da cidade parecia conseguir sentir o calor tocando sua pele e trazendo
a vida de volta. Ela tinha um milhão de perguntas correndo pela cabeça naquele
momento mas, em respeito a Charlie, tentou segurá-las.
Viu o garoto sozinho em um canto,
encarando a janela, com algumas bandagens cobrindo seu machucado. Calem parecia
cochilar, mas em poucos segundos começou a se remexer. Ela foi até a sala, onde
Sycamore e o Observador cochichavam, diminuindo o tom ao correrem os olhos e a
notarem chegando. Ashley tinha uma imensa xícara de café preto na mesa, onde
bebericava vez ou outra. Ela olhou por cima dos óculos, deparando-se com a
loura:
— Ei. Como você tá?
Serena abriu um sorriso.
— Pergunta idiota. — Ashley
repreendeu a si mesma, logo abrindo o que parecia – alguns poderiam dizer – um
sorriso. — Vocês foram muito corajosos.
Calem caminhou até a sala. A cara
estava em um estado de mau-humor absurdo de quem não conseguia pregar os olhos
havia tempos. Naquela hora, tampouco. Bocejou e abriu a garrafa térmica de
Ashley, servindo-se de um pouco do café. O Observador e Sycamore se juntaram
aos jovens, aniquilando qualquer que fosse sua conversa anterior. O professor
abriu seu típico sorriso, mas a expressão de sono ainda era perceptível.
— Estou muito orgulhoso de vocês. —
murmurou.
Calem deu de ombros.
— A gente cometeu no mínimo uns
quinze crimes. Não sei se é algo que a gente deva se orgulhar.
Nada como uma noite sem dormir
fugindo de um atentado para piorar o mau-humor. O Observador conseguiu quebrar
o gelo.
— Foi um risco imenso… Ainda não
acredito que colocamos vocês para fazerem tudo aquilo. Vocês são jovens
formidáveis.
Calem espiou de canto de olho
Serena, perdida na janela. Respirou fundo, o peito ainda apertado depois de
tudo o que aconteceu.
— Com sinceridade, agora. —
murmurou. — Nos contem o que precisamos saber.
O Observador e o professor se
entreolharam.
— Bem, como imaginam, o irmão de
Charlie… — balbuciou o detetive. — … não será algo que devem se preocupar mais.
A polícia conseguiu capturar alguns dos membros da gangue que estavam na Torre,
e isso deve levar aos que conseguiram escapar. Ainda os estão interrogando, mas
sem grandes informações até então. Dizem que foi arquitetado pela gangue há um
bom tempo.
Calem revirou os olhos.
— E você não acredita nisso.
O Observador parou de falar.
— Não temos como afirmar nada.
Calem lhe ofereceu uma expressão
fechada.
— Não precisam nos poupar de
informações. Somos jovens, mas fomos sozinhos àquela Torre e salvamos Charlie.
Temos o direito de saber de tudo. Eu sei que não foram só eles. Marc praticamente
me confirmou que havia alguém por trás.
O Observador buscou algum refúgio
na expressão de Sycamore, que deu de ombros com uma expressão que dizia “eu
disse que eles não são jovens quaisquer”.
— Pois é. Por isso estão tentando
extrair informações que levem a quem possa ter provocado tudo isso.
— Uma gangue de rua não cria um
atentado terrorista que paralisa Kalos. — retorquiu Calem. — Mesmo que seja um
líder da máfia, não existe nenhum motivo pra Marc fazer tudo aquilo só por
vingança ao irmão.
Ashley assentiu, mostrando o
monitor de seu computador. Ela alternou entre noticiários de Kanto, Unova e
Galar.
— O rosto de vocês não está só em
Kalos. Está no mundo inteiro. — ela ajeitou os óculos. — É sobre criar pânico, e tornar vocês figuras que ninguém teria remorso que fossem entregues em um
atentado. Ou que fossem presos. Ou qualquer outra coisa. Não acho que seja só isso, mas talvez seja uma das peças do quebra-cabeças.
Naquele momento Serena finalmente
disse algo:
— Foi o meu pai.
Todos ficaram quietos. O barulho do
vento entrando na pequena sala do hostel
assoviava entre os prédios de Lumiose.
— Eu sei que vocês estão tentando
não falar isso, mas é o que estão pensando. — ela falou, virando-se para eles,
mas encarando o chão. — Ele poderia ter feito isso. Poderia ter bancado isso.
Calem encostou a cabeça na parede.
— Marc preferiu desaparecer a ser
capturado. Ele sabia que se fosse pego e pressionado a falar enfrentaria o
pior.
O Observador aproximou-se da garota
e abaixou um pouco para encará-la. Aqueles olhos acinzentados como um céu que
esconde uma tempestade pareciam ter visto mais horrores que gostaria; ela sabia
que aquele não era um dia tão atípico na vida daquele homem. Ainda assim, havia
um tom de preocupação quando a observava.
— É uma hipótese, Serena.
Ele sabia dar as más notícias.
Existem informações que não há como reduzir seu impacto. Elas sempre serão más
notícias.
— É possível. Eu desconfio disso.
Mas muito provavelmente nunca chegarão nele por meio daqueles que foram
capturados. Qualquer um que se atrever a dar uma pista sobre o mandante muito
provavelmente será silenciado.
A garota cerrou os punhos,
agoniada.
— Então vai ficar por isso?
Ela queria gritar. Os outros
ficaram em silêncio. Serena há algum tempo sabia que as coisas não eram
exatamente justas como nas histórias com final feliz. Contudo, a injustiça às
vezes a tiravam do sério, lhe faziam pensar que não importa o que faça ou para
onde corra, ela sempre chegaria ao mesmo lugar. O Observador ponderou antes de dizer:
— Eu não quero dar falsas
esperanças, Serena, mas…
Ela levantou o olhar.
— Bem… A polícia não fará esse
paralelo com Stevan tão cedo. Mas talvez, sabendo dessa possível ligação, eu
possa traçar um caminho até ele e descobrir seu grau de responsabilidade nisso
tudo.
A garota arregalou os olhos.
— Mas o senhor não estava aposentando?
Ele massageou a testa cansada.
— Estava. Achei que poderia passar
os últimos anos cuidando de casos pequenos e cotidianos de Lumiose. — murmurou,
um pouco ranzinza. — Mas não vejo outra maneira. Tenho pessoas de confiança que
poderia aconselhar dentro da polícia, mas se vazasse que estão atrás de Stevan,
ele daria algum jeito de afastar as investigações.
Ele se recostou na janela.
— Pelo menos eu sei por onde
começar…
Ela se encostou ao lado dele,
tímida.
— Se o senhor conseguisse… Apenas
supondo…
Ele fechou os olhos e assentiu com
certo receio, pois sabia o impacto que aquilo poderia lhe trazer:
— Ele seria preso. Hipoteticamente.
E você estaria livre.
Serena quase chorou naquele
momento. O Observador não teve coragem de encará-la. Sabia que aquela pequena
hipótese seria o que a menina precisava para se agarrar e ter alguma réstia de
esperança. Contudo, as chances eram escassas diante do cenário que se desenhava
à frente. Um caso desses poderia levar tempo. Bastante tempo. E tempo era algo
que aquele trio não tinha.
Trio.
Serena caminhou até a porta do quarto, onde Charlie continuava na mesma posição. Ficou parada, o observando perdido. Ela tinha um milhão de questões na ponta da língua. Mas era preocupada o suficiente com o rapaz para compreender que ele havia atravessado dias ainda mais horripilantes que ela. Com suavidade e hesitação tocou os dedos finos em seu ombro.
— Charlie…
Uma longa pausa.
— Me desculpa, Serena.
Ele se virou para ela, cabisbaixo.
Ela sentou-se na beirada da cama, sem muita energia. Ele não conseguiu segurar
por muito tempo olhando em seus olhos, desviando para a sala e para a janela.
Os dedos nervosos se entrelaçavam e soltavam, procurando o que fazer,
procurando onde se agarrar.
— Por que, Charlie?
Respirou fundo.
— Eu precisava, Serena.
Ele se levantou, andando de um lado
para o outro.
— Eu não menti pra vocês. Você
sabe, eu morei mesmo em todos os lugares que disse. Eu era de Lumiose, Marc era
meu irmão, e todo aquele… Todo aquele pesadelo. Eu não menti.
Uma nuvem espessa se formava bem ao
longe, sendo soprada pelos ventos para fora da cidade.
— Eu estava em Laverre na época. Eu
já tinha passado muito tempo por Kalos, havia ido de norte a sul, do litoral ao
interior.
Os dedos batendo na janela.
— Mas em Laverre, um dia, eu fui
furtar a casa de uma moça e acabamos… Acabamos nos aproximando. Ela morava
sozinha, tinha uma doença meio grave, e eu acabei me dispondo de ajudar.
Serena prendeu a respiração. As
imagens em sua cabeça apareciam como um filme.
— E comecei a morar com ela. Ela
era… Ela era a pessoa mais incrível do mundo. A mais bonita, a mais amável, a
mais… Ah, a melhor pessoa do universo inteiro. Igual a você.
A garota sentiu um nó na garganta.
Cobriu a boca com as mãos, segurando firme enquanto ouvia.
— Eu sabia que ela tinha uma filha,
mas ela nunca contou muito sobre. E eu entendo, porque, né, eu que não queria
falar da minha família. Aparentemente o seu pai era meio doido, mas eu não
tinha dimensão do quanto. Ela disse que eles tinham feito um trato.
Calem espiava da sala.
— Um trato? — perguntou ela, com
uma voz fraca.
— Sim. De que você poderia sair de
casa com quinze anos.
Naquele momento, o primo se
encostou no batente da porta, cruzando os braços.
— O que a mãe dela tem a ver com
isso?
Os dois voltaram sua atenção a
Calem. Charlie deu de ombros.
— Não culpe o mensageiro.
— Por que ela fez isso, Charlie? —
indagou a loura. — Por que ela nunca…?
— Porque ela não pôde. — Charlie
sentou-se em sua frente e pegou em sua mão. — Ela não podia ir atrás de você. Seu
pai não… Bem, é por causa do seu pai. Basicamente.
— Mas por quê?
— Eu não sei, Serena. Eu não sabia
o tamanho da encrenca. Ela só sabia que ele viria atrás de você, mesmo
supostamente te deixando sair de casa. Cedo ou tarde. Ela queria te ajudar, de
algum jeito. E ela confiou em… Mim.
Calem socou a parede.
— Por que você não disse, Charles?
Você teve tanto tempo, tantas oportunidades…
— Porque eu achei que ia conseguir.
— naquele momento ele se perdeu e a voz ecoou por todo o lugar, silenciando até
as conversas na sala. — Achei que era só defender vocês de uma floresta
pequena, de não serem assaltados na rua, ou lembrar de ligarem para o papai de
vez em quando. Era um segredo, eu prometi a ela que não contaria a você para
não coloca-la em risco.
Abaixou a cabeça.
— Mas quanto mais tempo passou mais
eu entendi o quão difícil era aquilo… E por que eu precisava estar aqui. Virou
uma bola de neve, uma bola de neve enorme e de repente tudo estava se
conectando. Eu. Seu pai. Sua mãe. Meu irmão.
Serena recolheu a mão, deixando-o
sem ter onde se segurar. Ele acariciou a própria pele áspera, encarando as
palmas suadas e trêmulas.
— Eu devo muita coisa à sua mãe,
Serena… Muita coisa. E eu confesso que a ideia de viver no luxo por uns meses
com vocês parecia tentadora e um grande motivador… Mas logo que eu te conheci…
Você era o próprio motivo pelo qual eu queria proteger. E eu achei… Achei que
eu ia conseguir.
Ela balançou a cabeça.
— Por que… Por que você mandou
aquela carta ao meu pai?
Então, esfregou as mãos no rosto.
— Quando o Calem me disse que seu
pai organizaria seu casamento um dia, eu logo entendi que era uma das coisas que Alice,
sua mãe, temia… Ele iria tentar captura-la de novo. E ele havia descoberto que você e o Calem não
estavam sozinhos. Eu precisava… Precisava fazer alguma coisa. Precisava que ele
não soubesse de mim, e menos ainda de Alice, deixasse tudo como estava… Ele não
podia desconfiar que sua mãe tinha algo a ver com a história. Você parou de
respondê-lo e eu sabia que isso iria colocá-lo em sua cola. Mas se te
convencesse que você precisava voltar a falar com ele só para despistá-lo, você
ia desconfiar que eu sabia algo a mais.
O garoto então cerrou os punhos,
socando o próprio chão em um acesso de ódio.
— Mas no final fui eu quem estragou
tudo tentando ajudar. Não consegui te proteger como sua mãe queria, não
consegui afastar seu pai, só… Só estraguei tudo. Pra todo mundo.
Serena sentiu as lágrimas
escorrendo. Ela chorou tantas vezes nos últimos dias que pareceu um processo
natural. Charlie também não conseguiu segurar as emoções. De repente, todos os
sentimentos por tanto tempo aprisionados eram libertos como um tsunami em tão
pouco tempo. Uma vida inteira em uma cidade, em um quartinho.
Ele segurou na mão dela de novo.
Dessa vez ela não o afastou.
— Sua mãe não te conheceu, Serena…
Mas ela sentia que…Que você iria me acolher. De algum jeito. Ela poderia ter
errado. Mas não errou. Vocês me receberam como se eu fosse parte da família. —
ele levantou o olhar a Calem. — Você, pelo menos.
O outro deu de ombros.
— Eu sempre achei que você escondia
algo. E eu estava certo.
Serena olhou nos olhos de Charlie
sem saber ao certo o que sentir. Ela entendeu a história, entendeu que o garoto
tentou, de algum modo, fazer o melhor. Mas sentia uma ponta de desapontamento
em seu peito. De repente, aquele garoto de olhos verdes cheio de humor e
histórias fantásticas parecia apenas um personagem de uma peça; as cortinas
haviam subido, e só o que restara era o ator à sua frente, no qual já não se
sabia onde a realidade se misturava à ficção.
— Eu nem acredito que contei tudo
isso. Eu já tentei contar minha história de tantos jeitos diferentes que às
vezes me esqueço da verdade. — murmurou o rapaz. — Chega uma hora que sua
cabeça esquece aquilo que você já viveu e aquilo que você precisa convencer os
outros que viveu. Vira uma grande névoa, e você só consegue ficar infeliz.
Apático.
Ele se levantou e ficou entre os
primos.
— Serena, Calem… Eu fiz muita
burrice. Uma atrás da outra. Acho que a gente só está aqui agora porque eu fiz
tanta merda. Mas eu juro que achei que estava fazendo o melhor. Eu só não
queria colocar vocês no meio. Não desse jeito.
Calem semicerrou o olhar.
— Nós não estamos no meio, Charles.
Nós somos o meio.
O primo caminhou pelo quarto,
parando na janela, perdido. Esperava que quando se deparasse com o vidro, veria
a paisagem do jardim das mansões de Vaniville. Que poderia voltar no tempo e
tudo seria normal. O que mais o assustava não era não poder voltar no tempo. Era
que ele nunca conseguiria, depois de tudo aquilo. Nunca existiu normalidade. O
revólver que Marc segurava parecia de novo à sua frente, podendo roubar-lhe a
vida em uma fração de segundo.
— E sim, a verdade é que você é
grande parte do motivo de as coisas estarem assim agora. — resmungou.
Em seguida, virou-se para Charlie,
encarando os olhos verdes tristes e cabisbaixos.
— Mas elas também podiam estar mil
vezes piores. — disse, cruzando os braços. — E elas não estão por sua causa.
Então…
Charlie limpou as lágrimas e abriu
um sorriso torto.
— Isso é um “obrigado”?
Calem fechou a cara, se levantando
constrangido.
— É você quem disse, não eu.
O outro soltou uma risada amigável.
— Não esquece que eu lembro que
você me chamou de “Charlie”.
— Ora essa, Charles, eu tenho mais
o que fazer. — resmungou Calem corado, indo rumo à sala.
Charlie continuou rindo sozinho,
mas logo voltou a ficar sério encarando a garota à sua frente, ainda imóvel.
Perdida. Ela tinha esse direito. Tinha todo o direito de querer nunca mais
olhar em sua cara. Ele havia subestimado aquela garota desde o primeiro dia.
Achou que sua função era de defendê-la do mal, porém, quando seu mundo estava
desabando, foi ela quem o salvou com coragem, mesmo com a suja verdade que se
colocou à sua frente.
— Charlie… Você disse que minha mãe
estava doente… — fungou ela. — Ela…?
Charlie emudeceu.
— Eu não sei, Serena. — brincava
com os dedos. — O quadro dela piorou ao longo dos anos… Mas ela era – é – forte
igual a você. Nós podemos ir até lá. Juntos. Se você ainda me quiser na jornada
com você.
Após alguns instantes, ela desenhou
um fino sorriso. Ele sorriu de volta. Deslizou um dedo em sua bochecha e limpou
uma lágrima delicada que se formava. Não gostava de vê-la chorar.
— Lindo, quase chorei. — resmungou
Calem de longe. — Mas esqueceram que estamos presos aqui?
Um silêncio pairou sobre a sala.
Sycamore olhou para o Observador, que evitou transparecer qualquer emoção até
ceder, com um tom de resmungo:
— Céus, vocês vão deixar minha vida
inteira em débito com a polícia de Kalos. — murmurou. — Eu posso tentar dar um
jeito nisso.
Os três levantaram em um salto.
— Isso é sério? — indagou Calem.
— Posso garantir que não serão
parados na saída. Só isso. — falou o detetive. — Mas depois disso, é com vocês.
Naquele momento, Sycamore atendeu
um telefonema. Tentou abafar a chamada indo até a janela para conversar, mas
logo retornou ao grupo com seu costumeiro sorriso.
— Pode subir. — falou, desligando a
chamada e então se voltando aos outros. — Tem alguém que gostaria de
encontrá-los.
Todos ficaram em silêncio até que ouvissem algumas batidas. Sycamore abriu a porta, e o grupo se deparou com um rapaz mais baixo que Serena, de cabelos louros espetados e um enorme traje azul típico de cientistas que trabalham com experimentos robóticos. Um par de óculos redondos marcantes ampliavam o tamanho de seus grandes olhos acinzentados. Nas costas, uma mochila que parecia guardar algo bem mais complexo que meros livros. Ao seu lado, uma jovem criança também loura, que abraçava um pequeno Dedenne.
O garoto cumprimentou o professor e
o Observador e se colocou à frente dos jovens.
— Meu nome é Clemont. —
apresentou-se, ajeitando os óculos. — Eu sou o líder do ginásio de Lumiose, e o
responsável pela Prism Tower.
Ele deu um aperto de mão. Clemont
parecia mais jovem que os três – talvez apenas em aparência – mas tinha uma
pose de alguém muito mais velho. O rapaz era um nome extremamente conhecido na
ciência de Kalos por ser um prodígio da área de robótica, desenvolvendo
invenções que inovaram os sistemas da tradicional torre de Kalos.
— Essa é a Bonnie, minha irmã.
Bonnie soltou um bocejo. Ela havia
estado junto dos outros naquela noite por ser a única pessoa capaz de entrar de
maneira segura nos sistemas de Clemont em caso de emergência. E, claramente,
havia sido uma emergência.
— Nunca achei que fôssemos
enfrentar algo daquele tipo… — murmurou o garoto, coçando o queixo.
— Devo parabenizá-lo, jovem
Clemont. — disse o Observador, dando-lhe tapinhas nas costas. — A estrutura e
segurança da Torre nos auxiliaram a impedir uma catástrofe maior. Pelo menos
não houve mais feridos.
— Precisarei revisar tudo, depois
dessa… Com certeza. — comentou, mexendo nos cabelos.
Calem ficou um pouco sem jeito.
— Talvez eu tenha certa culpa
nisso. — falou, lembrando-se do jeito que ficou a arena de batalhas do ginásio.
O menino deu uma risada simpática,
aproximando-se.
— Você fez o que precisou fazer
naquele momento. Máquinas, felizmente, podem ser consertadas. — falou.
Ele pressionou algumas teclas em um relógio em seu pulso – que parecia fazer tudo menos informar as horas – e sua mochila se abriu. Todos tomaram um susto quando uma mão robótica se deslocou de dentro com uma enorme naturalidade, abrindo-se na frente de Calem. O garoto não entendeu direito o ato até perceber um pequeno símbolo sendo segurado. Um triângulo dourado como um escudo, de onde partiam uma série de raios elétricos, símbolos do Ginásio de Lumiose.
Calem levantou o olhar ao líder, confuso.
— Quero que fique com isso como
agradecimento.
— Como assim? — questionou o outro,
dando um passo para trás. — Eu não posso aceitar, não lutei contra você. Nem
faz sentido.
— Você lutou contra o Clembot. — deu uma risada cansada. — O sistema de inteligência artificial que eu criei para auxiliar a enfrentar os desafiantes. Eu não estava operando, mas ele iniciou automaticamente com a batalha. Seu adversário tinha o controle dele, era como lutar contra uma máquina. — fez uma pausa. — Bem, uma máquina sujeita às falhas humanas de quem o comanda.
Calem titubeou.
— Ele precisa de uns ajustes, mas
você conseguiu enfrentá-lo. Um dia a inteligência artificial irá superar totalmente
a humanidade, sabe? — ponderou.
O outro balançou a cabeça.
— Mesmo assim, eu não posso
aceitar…
Clemont pegou a insígnia do robô e
ofereceu de sua própria mão a Calem, colocando entre seus dedos.
— Sei que não pode registrá-la
oficialmente ainda… Mas espero que logo as coisas se acertem para vocês. Quando
se acertarem, volte ao meu Ginásio. Faremos uma batalha pessoalmente e
validaremos essa insígnia para a Liga, tudo bem? É apenas um agradecimento
temporário.
Calem olhou para a insígnia em sua
mão, levantando o olhar para o líder, que abriu um sorriso. Ele sorriu de
volta.
— Combinado. — falou, dando-lhe um
aperto de mão.
Naquele momento, uma sequência de
batidas altas soou da porta da sala, colocando todos em posição de alerta. Os
primos deram passos para trás, desesperados. O Observador pareceu procurar
alguma maneira de se defender. Clemont pressionou um botão e duas mãos
robóticas se colocaram em posição de ataque. Apenas o Professor não pareceu
muito exaltado.
— AQUI É A POLÍCIA! ABRAM
IMEDIATAMENTE!! — berrou uma voz feminina do lado de fora.
— Pela janela! — gritou Charlie,
pegando suas coisas.
Naquele momento o professor abriu a
porta, revelando um total de zero policiais. No lugar, havia uma menina de
longos cabelos negros penteados sobre uma boina cor-de-rosa e um rapaz louro
alto ao seu lado com a pele vermelha de vergonha como uma Cheri Berry.
—
SERENAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA! — gritou a menina abraçando a menina
loura que mal conseguia respirar.
— Kath, pelo amor de Arceus, nós ainda somos fugitivos.— disse Serena
respirando aliviada com a mão sobre o peito onde seu coração quase saía pela
boca. — O que você tinha na cabeça? Quase nos matou do coração!
— Ih minha filha quem deve teme,
né. — disse ela, com a mão na cintura. — E a senhora deve um monte pelo visto,
é só o seu rosto que tá na tevê todo dia o tempo inteiro! É Serena pra cá,
Serena pra lá, Serena acolá. Dá até raiva menina, falam tanta coisa ruim de
você que se eu não conhecesse...
Aldrick entrou, encostando a porta
suavemente.
— Mil perdões, eu falei que não era
uma boa ideia…
Calem esfregou a mão no rosto.
— Pronto… Foi só a gente ter um respiro que vem Arceus e os outros
quarenta lendários querendo visitar. Como todo mundo nos encontrou?!
— CALEM-KUN MEU PRINCESO! — gritou
ela correndo para um abraço mesmo com todas as tentativas do outro de escapar.
— O profe que é um baita fofoqueiro, eu amo. Liguei correndo pra ver se ele
sabia o porquê desse babado todo na Torre que ninguém me chamou, não é que ele
sabia dos bastidores tudo?
Os três encararam o homem.
— PROFESSOR!
Ele deu uma risada.
— Eles estavam preocupados com vocês.
Achei que gostariam de revê-los depois de tantas emoções. É bom nos reunirmos
com as pessoas que amamos.
— Na próxima eu deixo você ir no
meu lugar, se quiser. — resmungou Calem para ela.
— Meu deus você tá fracote demais,
é com esses bracinhos que você quer me vencer na Liga?
Calem corou, cruzando os braços
para tentar disfarçar. Em seguida a garota virou-se para Clemont ao lado.
— Falando em fracote e em Liga OLHA
SÓ SE EU JÁ NÃO TENHO A INSÍGNIA DESSE AQUI!
— É um prazer revê-la… — murmurou o
louro um pouco sem graça.
— Que bom que estão a salvo… —
disse Aldrick, sorrindo. — Até fomos próximos à Torre para tentar ver melhor,
mas não adiantou muito. Ficamos preocupados com vocês.
— Estamos a salvo. — disse Calem,
sério. — Por enquanto.
Katheryn se jogou no sofá
confortavelmente como se estivesse em casa.
— Quais os planos?
Os três se olharam.
— Bem, temos uma… Uma missão em
Laverre. — comentou Charlie, dando uma piscada para Serena.
— Ahhh sempre me falam que é uma
cidade linda!!! Eu morro de vontade de conhecer, vamos pra lá também Aldy!! —
falou a garota.
— Kath, não podemos colocá-los em
perigo!
Calem deu uma risadinha.
— O perigo maior somos nós para
vocês. — argumentou. — Mas se quiserem assumir o risco, serão bem-vindos.
Kath esticou os pés sobre uma
mesinha de centro.
— Quero ver alguém mexer com vocês
com Kate Berry por perto!
Calem examinou o tempo do lado de
fora.
— Bem, já que vamos, devemos ir o
quanto antes...
— Acho que pode não ser uma ideia
estratégica. — murmurou Ashley, até então quieta mexendo no computador. Ela nem
tirou os olhos da tela. — Vocês não conseguem parar em pé. Descansem hoje e
partam amanhã de manhã. A Route 13
pode ser perigosa se não forem atentos.
— Gente, e quem é você?? — indagou
Kath só então notando a presença da ruiva.
— Alguém que já está de saída. —
falou, fechando o computador.
— Podemos garantir que pelo menos
até amanhã vocês fiquem em segurança por aqui. — comentou o professor. — E
amanhã vocês saem cedo para a próxima cidade.
Kath deu um salto do sofá.
— Ouvi dizer que tem um PÂNTANO!!
Eu não vejo a hora de ver que criaturas bizarras e loucas que vão tentar
engolir a gente estão escondidas naquela água gosmenta e suja que a qualquer
segundo pode fazer a gente afundar e morrer!!! — gritou, empolgada, percebendo
um sinal de todos para que falasse mais baixo.
Calem coçou a cabeça.
— Ninguém me avisou de pântano
nenhum.
E virou-se para o Observador.
— Acha que consegue para nós um
helicóptero também?
Serena mexia em suas coisas na
mochila no quarto quando Aldrick entrou caminhando suavemente, com sua
costumeira expressão cuidadosa.
— Como está o ovo, Serena?
Ela abriu um sorriso, pegando o ovo
no colo com certa dificuldade em equilibrá-lo.
— Ai Ald, para ser sincera faz uns
dias que não tenho dado tanta atenção para ele… Mas ele parece que tem ficado
um pouco mais agitado.
— Agitado? — cortou Kath, entrando
na conversa. — Garota, seu primo fugindo do pântano é menos agitado que esse
ovo.
— Ele está nascendo! — comentou
Ald, abrindo um sorriso.
Serena tomou um susto. Sentou-se
sobre a cama e colocou o ovo no colo, vendo-o balançar para um lado e para o
outro tentando conseguir romper a casca. Rachaduras começaram a se desenhar.
Todos se puseram em volta do evento. Por um segundo, todas as tensões e medos
das múltiplas discussões foram silenciados por um acontecimento que parecia tão
mágico que às vezes esqueciam o quão natural era: a Vida.
— O milagre da Vida nunca perde a
beleza. — comentou o professor, admirado.
Serena conseguiu avistar uma pequena criaturinha de pelos castanhos. Um par de orelhas começou a se mover, tentando captar o que acontecia ao redor enquanto os dois olhos ainda não conseguiam se atrever a enxergar o mundo ao redor. Se afagava em sua própria cauda felpuda, tentando se aquecer em meio ao frio de Kalos. Serena não podia acreditar na bela cena que testemunhou, fazendo-a esquecer por um segundo todos os problemas.
— Um Eevee!!
Ela cobriu a criatura com uma
manta, afagando-a em seu colo. Aldrick sentou-se ao seu lado para ajudá-la, e
logo o professor se juntou para dar alguns conselhos e orientá-la. Bonnie já
queria colocar as mãos para acariciar o Pokémon, sendo repreendida por seu
irmão. Até mesmo o Observador e Ashley, que costumavam ser mais frios, não
evitaram sentir o coração mais aquecido com a cena. Os medos abriram um pouco
de espaço para que se lembrassem do porquê tudo aquilo era suportável. Como um
translúcido arco-íris que se forma após uma tempestade devastadora.
Calem dava apoio a Serena. Correu seus olhos para a sala, vendo Charlie sentado sobre a janela. Abriu um sorriso fino. Ele sorriu de volta.